Brasil
Após caso de Larissa Manoela, desabafos sobre violência financeira se multiplicam
"Honrar pai e mãe" é ideia que prevalece e gera culpa nas vítimas, que precisam recorrer à terapia para reagir a abusos
Desde a morte do pai em 2017, Eduarda (nome fictício), de 26 anos, afirma que vive sob manipulação financeira da mãe. Aos prantos e com a voz embargada, lembra o dia em que, após poucas semanas de luto, foi levada por ela até o banco para fazer um cartão em seu nome. Um inferno começaria ali para Eduarda. Hoje com uma dívida de mais de R$ 200 mil, a jovem tenta se reerguer do golpe da própria mãe, que ousou comprar até um Mercedes-Benz de R$ 350 mil.
— Eu aceitei ir ao banco porque estava desnorteada, tinha perdido o meu melhor amigo. Ela me questionava o porquê de eu estar triste, já que meu pai tinha deixado uma herança boa. Hoje eu não tenho nada e ainda preciso pagar o parcelamento do empréstimo — relata Eduarda, que, com ajuda de uma advogada, tenta levar o caso à Justiça e recorda que cedia ao assédio porque a mãe alegava problemas financeiros e ameaçava cometer suicídio caso não a ajudasse.
— Hoje não tenho dinheiro para colocar crédito no celular. Aceitei que minha mãe não me ama, só ama ela mesma e o dinheiro.
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A jovem foi uma das milhares de pessoas que abriram o coração nas redes sociais para desabafar sobre um conceito pouco conhecido, a violência financeira, que ganhou repercussão com as alegações da atriz Larissa Manoela. A artista contou ter perdido um patrimônio de R$ 18 milhões para os pais, que negam as acusações da filha.
Entre as celebridades, a lista vai da cantora Jewel, famosa nos anos 1990, ao astro da NFL Michael Oher, que revelou recentemente ter sido lesado em milhões de dólares pelos supostos pais adotivos.
"Honrar pai e mãe" é ideia que prevalece e gera culpa
Em processos de herança, são comuns as disputas por um naco de dinheiro que colocam irmãs contra irmãos e filhos contra madrastas ou padrastos, numa combinação sem fim de parentes em pé de guerra. Entre ações amigáveis e conflituosas, o judiciário brasileiro soma mais de 60 mil processos em tramitação, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
A violência financeira ou patrimonial consiste na exploração indevida, ilegal ou não consentida dos bens financeiros e patrimoniais ocorrida em relacionamentos — de pais para filhos, filhos para pais e entre parceiros românticos ou idosos e cuidadores. Um abuso comum é o controle das contas bancárias, que se transformam em dívidas, extorsão ou desvio de bens. O extravio de bens do filho pode acarretar a suspensão do poder familiar e pode ser enquadrada, segundo o Código Penal, como abuso de incapaz.
Não há estatísticas específicas sobre os casos como o de Larissa Manoela, sobretudo porque os filhos, em sua maioria, não denunciam os pais e, muitas vezes, os perdoam no futuro, após resolvidas as pendências judicializadas ou não. Além disso, muitos dizem não saber se têm direito à reparação pelos danos causados, e ainda prevalece, de acordo com os especialistas, a ideia de que é preciso “honrar pai e mãe”.
São muitas as faces da violência financeira, tática sutil usada em relacionamentos que envolvem afeto e pode ser cometida de pais contra filhos, de filhos contra pais, de famílias inteiras contra idosos, de marido contra a mulher (o mais frequente) e vice-versa.
As práticas vão desde rotinas comuns de quem se propõe a controlar as finanças e a conta bancária por saber lidar melhor com dinheiro até a episódios em que as vítima são devastadas com dívidas, frustração e sentimento de culpa. Em alguns casos, é possível observar crimes associados à apropriação indébita, como violência física, extorsão e ameaças.
De acordo com a advogada Regina Beatriz Tavares, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), em casos de violência patrimonial contra menores, o crime pode ser caracterizado como abuso de incapaz e até ser enquadrado na Lei Maria da Penha, quando se trata de violência doméstica ou familiar contra a mulher.
O drama da atriz provocou um movimento da sociedade civil e de parlamentares para que sejam criadas leis mais específicas, que garantam mais transparência ao menor no acesso às informações sobre o seu patrimônio e a revisão das cláusulas dos contratos assinados a partir do alcance da maioridade.
— O Brasil tem legislações amplas em relação a menores de idade e sobre a união estável, por exemplo. Com isso, vão sendo criados embaraços processuais e as ações se prolongam por anos — explica. — Nos casos de herança, essa ações são geradas por herdeiros que reclamam não terem recebido aquilo a que faziam jus.
Entre as guerras por dinheiro acumulado em vida por personalidades, as mais conhecidas são sobre o espólio do apresentador Gugu Liberato, o do cantor Agnaldo Timóteo e o do empresário Waldomiro Zarzur, nome por trás de um dos edifícios mais altos de São Paulo, o Mirante do Vale, e que há uma década está no meio de uma batalha por R$ 500 milhões que teriam sido ocultados do patrimônio a ser dividido. E as brigas não ficam restritas aos atores principais da família conhecida. Segundo o CNJ, há mais de 16 mil processos de requerimento de herança por filhos reconhecidos após a morte dos pais e, na outra ponta, outros 5,1 mil pedidos de anulação.
Pais boicotam independência dos filhos
As razões por trás do abuso são complexas e podem envolver manipulação intencional ou fatores de controle decorrentes de desafios pessoais, como o medo instilado da ruína financeira. Em casos onde os genitores são os violadores, um dos possíveis diagnósticos para o comportamento abusivo é o chamado “transtorno dos pais narcisistas”, que faz com que eles coloquem seus interesses acima das necessidades dos filhos. Muitas vezes, os pais interpretam a independência e a individualidade dos filhos como ameaça, e tendem a boicotar a vida deles.
De acordo com a psicóloga Maiara Pontes, o comportamento narcisista somado à violência financeira causa traumas difíceis de serem superados. Presente aos montes nos consultórios terapêuticos, as principais queixas são de insegurança nas relações pessoais, ansiedade e depressão. O mais doloroso, diz a especialista, é que as vítimas, quase sempre, só se dão conta dos fatos após anos de violação.
— Em brigas entre pais e filhos o quadro é ainda mais angustiante, visto que a pessoa é lesada por quem deveria protegê-la. A melhor forma de tentar se reerguer psicologicamente é procurando ajuda terapêutica e ter rede de apoio, sempre com paciência e autoamor, porque é um processo longo — explica.
Terapia ajuda a lidar com golpes da própria família
A estudante de psicologia Sara (nome fictício), de 23 anos, recorreu à terapia para tentar lidar com os golpes da mãe. Afirmando ser agredida pela genitora desde criança, ela conta que a mãe restringia suas relações e a impedia de trabalhar. Com a herança de R$ 50 mil recebida pela jovem do avô, a mulher decidiu comprar um carro para Sara, mesmo não sendo seu desejo, no valor de R$ 27 mil, e depois o vendeu sem autorização da filha. Os R$ 23 mil restantes foram desviados pela mãe.
— Ela dizia que eu era imatura para lidar com dinheiro e por isso decidia o que fazer. Quando vendeu meu carro, me senti roubada. Meu pai nunca a impediu de fazer esse tipo de coisa — relata Sara. — Hoje eles são separados, moro com o meu pai e preciso pagar todas as contas porque ele gastou sua parte na herança.
Uma arquiteta de 42 anos também sofreu agressões da mãe por ter escolhido parar de trabalhar para se dedicar aos estudos, após receber uma bolsa do Prouni, em 2006. Sem aceitar a escolha da filha, a mulher parou de falar com ela e até a impediu de se alimentar em casa.
— Ela parou de conversar comigo, parou de dar dinheiro, jogava o almoço para os cachorros. No fim da história, teve um dia que ela ficou muito nervosa e me bateu muito, tanto que eu fui parar no hospital. Eu tinha até pensamentos suicidas na época —desabafa ela, que após as violações, conseguiu mudar o turno da faculdade, voltou a trabalhar e começou a fazer terapia. O acompanhamento a ajudou a fazer as pazes com a mãe. (Colaborou Mayra Castro, estagiária sob a supervisão de Carla Rocha)
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