Internacional
Afeganistão vive guerra contra as mulheres dois anos após retomada do Talibã
Proibidas de estudar, trabalhar e viajar desacompanhadas, repressão faz relatos de suicídio de mulheres e meninas aumentarem desde o retorno do regime Talibã
Há dois anos, quando os Estados Unidos retiraram suas tropas do Afeganistão após duas décadas de ocupação, o mundo inteiro parou para ver as cenas de desespero que tomaram a capital, Cabul. Dos homens que se penduraram em aviões para fugir do país às mulheres que entregaram seus bebês a soldados estrangeiros, todos temiam as consequências do retorno do Talibã ao poder. Para elas, porém, o dia 15 de agosto de 2021 marcou o início de uma nova guerra, na qual as mulheres — e todos os direitos que haviam conquistado nos últimos 20 anos — se tornaram o alvo principal do regime.
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O primeiro direito suprimido foi o de ir e vir. Do dia para a noite, as afegãs foram não só proibidas de viajar desacompanhadas de um homem, como também de andar curtas distâncias sozinhas. Quando se atrevem a sair, são obrigadas a vestir a burca — vestimenta usada por mulheres em alguns países islâmicos que cobre todo o corpo e o rosto, incluindo os olhos, tampados com uma rede para que possam enxergar minimamente.
— As mulheres perderam a liberdade de ir e vir e, sem isso, você não tem mais nada. Até mesmo poder ir ao médico, em algumas províncias você não pode ir sem levar um homem com você — explica ao GLOBO Heather Barr, co-diretora de Direitos da Mulher da Human Rights Watch (HRW).
Fuga por liberdade
Foi diante desse cenário que Sasha — nome fictício da entrevistada, que falou com a reportagem sob condição de anonimato — fugiu do Afeganistão cerca de um mês após a retomada do Talibã.
— Eu estava trabalhando quando o Talibã invadiu Cabul, havia deixado meu filho na escola, que era perto do meu escritório. Até que o telefone tocou e era meu marido avisando: ‘Volte para casa agora!’ — relatou Sasha, de 35 anos. — Eu busquei meu filho, mas meu carro não estava mais onde havia estacionado. Fiquei desesperada, todo mundo estava chorando, eu ouvia os tiros ao fundo e ninguém podia me ajudar. Depois, o meu celular parou de funcionar. Eu sabia que estava numa situação muito ruim.
Quando enfim conseguiu chegar em casa, Sasha e o marido pegaram todos os seus documentos e reservas financeiras guardadas na residência e fugiram para a casa de um parente junto com o filho.
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Após um mês, decidiram migrar para o Paquistão, numa travessia perigosa que envolveu negociações com grupos armados no caminho. O casal ficou oito meses no país, mas em meio à falta de perspectiva, começou a buscar novas opções de asilo. Até que surgiu o Brasil. Com o auxílio da embaixada brasileira, a família pôde migrar e Sasha hoje trabalha como mediadora cultural no posto de recepção a refugiados afegãos no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. A história, no entanto, foi quase como um filme repetido.
— Em 1995, quando eu tinha sete anos, deixei o país pela primeira vez com a minha família porque o Talibã estava avançado para tomar o poder. Nós fomos para o Paquistão, depois para o Irã, mas quando as Forças Armadas americanas entraram em 2001, nós decidimos voltar para casa — relata. — Depois que o Talibã retornou em 2021, meu pai se culpou muito dizendo que todos nós estávamos sofrendo por causa da decisão dele de voltar. Eu não quero prejudicar minha vida hoje e passar pelas mesmas coisas de novo.
O cenário não foi muito diferente para Sabra Rezaie, afegã de 38 anos que hoje também atua como mediadora cultural em Guarulhos após fugir do país. Antes do Talibã, ela era guarda no Parlamento e também atuava como parteira. Depois, a única saída foi deixar tudo para trás.
— Quando os confrontos se aproximaram de Cabul, nos avisaram que o governo cairia, por isso não fui ao trabalho e fiquei em casa — descreve Rezaie sobre o seu 15 de agosto de 2021. — Eu tinha medo de que o Talibã atacasse nossa casa e cortasse meu pescoço na frente dos olhos de minha mãe. Eu não tinha medo da minha própria morte, porque todos morreremos um dia, mas temia que eles me matassem na frente da minha mãe.
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Crise humanitária
Segundo o Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), cerca de 1,6 milhões de afegãos fugiram para países vizinhos desde que o regime Talibã voltou. Nos principais destinos, Paquistão e Irã, homens e meninos correspondem a 55% dos requerentes de asilo, embora sejam 51% da população total, de acordo com a ONU Mulheres. O país vive, ainda, uma das mais graves crises humanitárias do mundo, com um recorde de 28,3 milhões de pessoas — incluindo mais de 11,6 milhões de mulheres e meninas — precisando de assistência humanitária.
Proibidas também de trabalhar e de estudar, Heather Barr, diretora da HRW, aponta que o cenário tem um profundo impacto na saúde mental das mulheres, com o aumento de relatos de suicídios. Segundo o Human Rights Council (HRC), até duas mulheres tiram a própria vida por dia no Afeganistão.
— Todo dia há pelo menos uma ou duas mulheres que cometem suicidio pela falta de oportunidade, pela saúde mental, pela pressão que elas sofrem — disse Fawzia Koofi, ex-vice-presidente do Parlamento afegão, sobre as revelações do HRC. — O fato de meninas de apenas nove anos de idade serem vendidas, não apenas por causa da pressão econômica, mas porque não há esperança para elas, para suas famílias, não é normal.
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Segundo Rezaie, que tem contato com mulheres que ainda vivem no país, a ausência de perspectiva de futuro é generalizada.
— Elas dizem que perderam todas as nossas esperanças porque não têm permissão para estudar nem para trabalhar. Desde então, algumas sofrem com problemas mentais e outras até cometeram suicídio — conta. — Aquelas que protestaram contra o regime foram presas pelo Talibã e transferidas para um local desconhecido.
Ideologia acima de economia
De acordo com Barr, grande parte da migração das afegãs é motivada pela sua exclusão quase que total do mercado de trabalho. Até o fim de 2023, a estimativa é que a taxa de desemprego do país chegue a 20%, segundo dados do Trading Economics — contra 11,7 % em 2020, antes do Talibã. Depois de barrar as mulheres de órgãos públicos e ONGs nacionais e internacionais, como a ONU, a medida mais recente do regime foi fechar salões de beleza. Os efeitos da decisão, porém, vão muito além da estética.
— O motivo pelo qual isso é importante não é porque elas não poderão mais fazer o cabelo, mas porque 60 mil mulheres tinham empregos em salões de beleza e perderam sua fonte de renda — explica Barr, destacando também que o espaço era um dos únicos só para mulheres que serviam de acolhimento. — Até agora, a única área em que eles não haviam proibido mulheres de trabalhar foi no setor privado, mas o fechamento dos salões representa o primeiro passo para isso.
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Em dezembro de 2021, poucos meses após o retorno dos talibãs, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) estimou que as restrições aos direitos das mulheres resultariam numa perda econômica de até US$ 1 bilhão (R$ 4,9 bilhões) — cerca de 5% do PIB do país. Apesar do prejuízo financeiro, alimentado também por uma série de sanções impostas por países do Ocidente em retaliação às violações cometidas pelo regime, o Talibã está mais preocupado em defender o que acreditam ser a verdadeira interpretação do Islã, afirma Barr.
— Está claro que o Talibã quer reconhecimento internacional. Eles têm essa visão de sociedade, que acreditam ser a sociedade perfeita e que prometeram aos seus combatentes por 20 anos — explica a diretora da HRW — Eles convenceram seus combatentes de que as mulheres que trabalham, as meninas que vão à escola, tudo isso é influência ocidental.
Sem educação, sem futuro
Mesmo antes da volta do Talibã, a vida para as mulheres que queriam estudar não era fácil e escolas que permitiam meninas em salas de aula eram alvos frequentes de ataques terroristas. Em 2018, um deles foi responsável por fazer Sasha largar o emprego que tinha no Ministério de Educação Superior. Na tragédia, 48 pessoas morreram — incluindo muitos colegas seus — num atentado realizado por um homem-bomba num centro de estudos de Cabul.
— A vida das mulheres era bastante difícil antes do Talibã tomar o poder. Havia muitas políticas que o governo havia prometido, mas não foram cumpridas. Muitas meninas estavam fora da escola e o Estado não investia na educação delas da mesma forma que na dos meninos — explica Barr. — Embora a situação estivesse complicada, não dá para compará-la à realidade depois de 15 de agosto de 2021. Mulheres e meninas estão se sentindo prisioneiras em suas próprias casas. Agora, elas só podem estudar até a sexta série e há relatos de províncias que estabeleceram a idade limite em 10 anos.
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