Brasil
Técnicos da Anvisa visitam cultivo de cannabis na Colômbia para conhecer técnicas de plantio, segurança e qualidade
Visita aconteceu apenas alguns dias após o órgão anunciar nova diretriz que proíbe importação de flor de cannabis, interrompendo tratamentos médicos de, aproximadamente, cinco mil pacientes
Entrecortando as serras colombianas, dezenas de cultivos legais de cannabis invadem a paisagem que um dia foi dominada pelo narcotráfico. Com vasta experiência em conflitos provocados pelas drogas, que já mataram mais de 800 mil civis desde os anos 1980 e sol garantido quase 12 horas por dia graças à proximidade com a Linha do Equador, o país vem tomando a dianteira na América Latina do mercado de produção da planta para fins medicinais. Na semana passada, depois de um período tenso sob o governo de Jair Bolsonaro, que era contrário à ideia de cultivo no Brasil, três técnicos da Anvisa foram visitar as estufas colombianas de cannabis.
A expedição, feita sem alarde, foi para conhecer as instalações de cultivo, extração e processamento de seis empresas. A Colômbia já recebeu mais de US$ 300 milhões em investimento no segmento. Além de exportar, o foco é produzir com alta qualidade de pureza e a um custo mais baixo do que o praticado pelo Canadá, por exemplo.
A visita da Anvisa à Colômbia aconteceu em um momento delicado, apenas alguns dias após o órgão anunciar uma nova diretriz que proíbe a importação de flor de cannabis, interrompendo tratamentos médicos de, aproximadamente, cinco mil pacientes.
— Ficamos muito surpresos com a decisão. É lamentável que os pacientes fiquem desassistidos — comentou um dos executivos das empresas visitadas, que preferiu falar em anonimato sobre os argumentos de que o produto não seria confiável para importação e que poderia haver desvio de finalidade para uso não medicinal. — Tentamos mostrar a alta qualidade das flores de canabidiol que o Brasil pode importar, com controle de toda a cadeia de produção.
A equipe de especialistas em regulação e vigilância sanitária trabalha na revisão da RDC 327, que hoje traz as diretrizes para o uso da cannabis no país. Apesar de não estar autorizada a falar sobre o tour pela Colômbia, a equipe da Anvisa busca subsídios para uma eventual autorização de cultivo em território brasileiro, que tem apoio de parte do corpo técnico da agência — procurada, a agência decidiu não se manifestar. Os custos de fabricação do produto no país poderiam cair em mais de 50%. Hoje, a depender da complexidade do tratamento — que vai de crises epilépticas a câncer —, o medicamento pode custar entre R$ 1 mil e R$ 2.500 para pacientes brasileiros.
Além disso, o Brasil poderia ganhar posição privilegiada de player global no mercado como exportador de insumos de cannabis na América Latina por suas vantagens climáticas e geográficas. Levantamento do Prohibition Partners de 2021 indica que o ganho global do negócio pode atingir US$ 105 bilhões até 2026. Somente a América Latina pode responder por US$ 824 milhões dos US$ 55 bilhões estimados para o segmento de cannabis no ano que vem.
Plantação em montanhas
Outro interesse da Anvisa é observar o cenário de possibilidades para uma provável abertura na regulação da pesquisa, o que também representaria uma tremenda vitória para pesquisadores brasileiros que avançam em estudos clínicos. Na quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) volta a discutir a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, o que não tem uma relação direta com autorização de cultivo, mas pode impulsionar a pauta, que divide até mesmo a equipe técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Entrando e saindo de ônibus e aviões, o grupo de especialistas da Anvisa visitou plantações em diferentes altitudes e condições climáticas, dentro e fora de invernaderos, manejados por equipes de 50 a 300 funcionários. Vários deles migraram da indústria de flores (a Colômbia é o segundo maior produtor de flores do mundo, atrás apenas da Holanda), que em muito se parece à da cannabis em sua operação do dia a dia, com a diferença de ser muito menos lucrativa.
Durante quatro dias de uma agenda intensa com viagens entre Bogotá, Medellín e cidades do interior, os funcionários da agência de fiscalização acompanharam diferentes modelos de gestão da cadeia produtiva da cannabis em empresas como Plena Global Holdings, FoliuMed, Natuera e Pharmacielo. Nas exposições, foram abordados temas que vão de boas práticas de cultivo à distribuição final, passando por todo o processo cuidadoso para acessar o berçário das plantas sem risco de contaminação das mudas e pelo controle de qualidade e segurança. Os acessos à base de produção são abertos apenas a técnicos especializados sob vigilância 24h, uma exigência do Ministério da Justiça da Colômbia, onde o uso adulto (antes chamado de recreativo) ainda não foi liberado.
— Um software monitora temperatura, umidade e radiação, de modo que seja possível gerenciar todas essas variáveis da produção — conta Ludy Valero, gerente de operações da Plena Global Holdings, que possui os invernaderos mais tecnológicos do país, capazes de produzir cerca de duas toneladas de flor de cannabis por ano.
— A ideia era trocar conhecimento e dar acesso às experiências das empresas na Colômbia — explica Monica Nathalie Hoyo, diretora do Observatório Colombiano da Indústria da Cannabis (OCIC), de onde partiu a proposta de visitação para estreitar os laços de colaboração entre os dois países.
Regulação é desafio
Outro fator importante para ambos os países, até numa perspectiva de cooperação futura, era comparar realidades e criar um banco de informações para nortear uma possível regulação no Brasil.
— Isso permite que a Anvisa entenda as possibilidades de adaptação do processo. Porque se a Anvisa botar um padrão milionário, será impossível de seguir. Sabe quem iria plantar no Brasil? Ninguém — comenta Carlos Araújo, diretor da Cesar Peres & Luciano Advogados, que atuou como consultor do governo colombiano e fez a ponte com a equipe brasileira.
A comitiva, além dos funcionários da Anvisa, contou com representantes da Invima (equivalente à Anvisa colombiana), do Ministério da Justiça e do Fundo Nacional de Estupefacientes e da ProColombia (órgão ligado ao Ministério da Indústria).
No Brasil, ainda não se sabe quanto investimento seria necessário para montar operações como as da Colômbia. Apenas uma fábrica pode custar cerca de US$ 200 milhões. É certo, no entanto, que há pelo menos uma dezena de empresas privadas interessadas no negócio, que poderia contar com a parceria de universidades.
*Especial para o GLOBO.
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