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Investigações de juízes bateram recorde em 2022; sanção mais comum, aposentadoria compulsória é criticada

Agência O Globo - 29/07/2023
Investigações de juízes bateram recorde em 2022; sanção mais comum, aposentadoria compulsória é criticada
Dinheiro é para pagamento do benefício e para gestão do programa - Foto: Depositphotos

Dados do Conselho Nacional de Justiça levantados a pedido do GLOBO mostram que houve um recorde de investigações de condutas de juízes no ano passado. Desde 2006, foram abertos 240 procedimentos administrativos disciplinares (PADs). Em 2022, quando havia em atividade 8.035 juízes no Brasil, foram 31. Do total de processos disciplinares, ainda de acordo com o CNJ, 75 resultaram em aposentadorias compulsórias, ou 30% dos casos. A punição, prevista na Lei Orgânica da Magistratura, de 1979, é criticada por especialistas, porque o magistrado mantém seu salário líquido.

Foi o que aconteceu com uma juíza mineira que publicou nas redes sociais um vídeo em que ensina pessoas a andarem sem máscara no shopping em plena pandemia. Ela ainda é acusada de participar de evento político, atacar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e se recusar a voltar ao trabalho presencial. No mês passado, a magistrada foi aposentada compulsoriamente pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG).

Em outro caso recente, um desembargador do TJ-SP passou a acumular um salário líquido de R$ 26 mil após ser aposentado por beneficiar quatro traficantes presos em flagrante com mais de uma tonelada de cocaína — um deles, líder de facção criminosa em São Paulo.

Assédio sexual

A aposentadoria compulsória também foi aplicada pelo CNJ num caso do mês passado envolvendo um juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região acusado de assédio e importunação sexual contra alunas e servidoras do tribunal.

As vítimas relataram à ONG Me Too Brasil abordagens inapropriadas como toque físico, conversas sobre temas explicitamente sexuais e até beijos forçados. Em algumas ocasiões, o magistrado teria usado o próprio cargo para tentar convencê-las a ter relações íntimas. Ao GLOBO, o TRT-2 informou que os valores da aposentadoria serão calculados depois de a sentença do caso transitar em julgado.

Os tribunais também podem julgar e impor sanções. Assim, o número de aposentados de forma obrigatória pode ser ainda maior do que o contabilizado pela CNJ. Um juiz acusado de ter uma produtividade “inexpressiva e errática” e acessar no expediente “sites recreativos”, como páginas de apostas e de conteúdo adulto, foi aposentado precocemente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em outubro. Agora, sem trabalhar, ainda recebe um salário líquido de R$ 22,2 mil, segundo os últimos dados disponíveis no site do tribunal.

'Um brinde'

O advogado criminalista Welington Arruda, mestre em direito pelo IDP, explica que negligência com deveres do cargo, conduta imprópria ao decoro da função, na vida pública ou privada, e trabalho insuficiente sujeitam o juiz ou juíza à aposentadoria compulsória. O magistrado aposentado compulsoriamente tem de esperar três anos antes de advogar no juízo ou tribunal onde atuava, e não poderá assumir cargo de confiança no Judiciário.

O valor da aposentadoria é calculado com base no tempo de contribuição do profissional, que só perde o benefício quando demitido. Isso ocorre somente após a sentença judicial transitar em julgado, o que tira a possibilidade de recurso, e pode levar anos.

—É necessário ainda que o magistrado seja condenado a uma pena privativa de liberdade igual ou superior a um ano e por um crime cometido a partir do seu cargo de servidor público. Se tiver cometido um crime comum, ele também pode ser demitido, mas desde que a reprimenda aplicada seja superior a quatro anos — afirma Arruda, acrescentando que o juiz aposentado compulsoriamente não precisará devolver os valores recebidos caso seja condenado.

Para o advogado, essa realidade dificilmente será mudada porque há interesse do Judiciário em mantê-la, além de pouca disposição do Executivo e do Legislativo em “mexer no vespeiro”.

— A aposentadoria compulsória é vista como um brinde ao magistrado sancionado, já que sua punição será desfrutar de vencimentos milionários, sem ter que trabalhar e sem ter que oferecer à sociedade a contrapartida — completa.

Proposta na Câmara

Há algumas propostas em tramitação na Câmara que estabelecem mudanças na punição. A mais avançada é a proposta de emenda constitucional dos ex-deputados Rubens Bueno e Arnaldo Jordy que propõe acabar com a concessão de aposentadoria como medida disciplinar. Ainda estabelece a perda de cargo de juiz nos casos de quebra de decoro.

No ano passado, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou a admissibilidade da PEC, que agora aguarda a criação de uma comissão especial pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, para discutir o mérito. Depois, ela já pode ser levada à votação em plenário.

— Apresentei essa PEC em 2012, já são 11 anos. Cobrei várias vezes e não conseguimos avançar, é uma pressão absurda para não aprová-la— conta Bueno, que agora diz haver comprometimento do presidente da Câmara em nomear a comissão especial. — Os casos recentes reacenderam o debate. É uma situação escandalosa cometer um crime e ainda se aposentar com todos os benefícios para o resto da vida. Passa a mensagem de que o crime compensa — completa.

O deputado Kim Kataguiri (União-SP), que relatou a pauta na CCJ, também confirma a boa vontade do presidente da Casa:

— Lira, até onde sei, sinalizou positivamente, no sentido de que não vai sentar em cima. Vai deixar dar andamento.