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Bombas da Segunda Guerra Mundial são encontradas em rio Dnieper, na Ucrânia

Queda no nível das águas após a destruição da represa de Nova Kakhovka, em junho, revelou dezenas de artefatos de guerra escondidos por décadas em Zaporíjia

Agência O Globo - 26/07/2023
Bombas da Segunda Guerra Mundial são encontradas em rio Dnieper, na Ucrânia

Coberta de ferrugem e caramujos na areia, na margem do rio Dnieper, à primeira vista ela não parece uma bomba FAP-50 de um avião alemão da Segunda Guerra Mundial, como explica Ruslan Anikalov, chefe do esquadrão antibombas da cidade de Zaporíjia, no sul da Ucrânia, que veio removê-la.

— Não há dúvida — diz ele depois de confirmar de que arma se trata.

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Para transportá-la, eles usam uma maca de lona militar, como as usadas para levar feridos no front da guerra. Dois homens carregam o dispositivo, que pesa cerca de 40 kg, e fazem algumas paradas no caminho até o caminhão que irá transferi-la para outro local.

A destruição da barragem de Nova Kakhovka em 6 de junho, a cerca de 200 km do rio que fica abaixo da cidade de Zaporíjia, não matou apenas dezenas de pessoas. Somente na área controlada pela Ucrânia, o número de mortos subiu para 29, anunciou o ministro do Interior ucraniano, Igor Klimenko, na quinta-feira. A explosão dessa infraestrutura também baixou o nível da água a tal ponto que dezenas de bombas, como a FAP-50, que estavam escondidas desde o conflito armado entre 1939 e 1945, foram encontradas.

Nas últimas semanas, as forças de segurança em Zaporíjia receberam "uma média de dois ou três avisos por dia de cidadãos que se depararam com essas armas enquanto caminhavam ou pescavam na costa", explica Anikalov. A ordem, acrescenta ele, é não tocá-las porque são potencialmente perigosas, embora ele admita que é difícil que elas explodam sem serem manipuladas. De fato, o destino de todas é serem detonadas e destruídas.

— Após a Segunda Guerra Mundial, essas bombas ficaram lá, sem explodir, embaixo d'água. Imagine só, em 1943 e 1944, sem o equipamento necessário para localizá-las, mergulhadores... quando tudo foi destruído — diz a historiadora Svitlana Volodimorivna, funcionária do Museu Regional de Zaporíjia. — É um problema que permaneceu submerso durante todos esses anos — conclui.

Volodimorivna explica que os alemães tentaram lucrar com a grande usina hidrelétrica, bem como com as fábricas metalúrgicas em Zaporíjia, razão pela qual não bombardearam a cidade inicialmente.

— Mas quando eles se retiraram em 1943, destruíram tudo de uma vez. Naquela época, era normal que tanto as nossas fileiras quanto os alemães disparassem artilharia ou bombardeios pelo ar com projéteis que caíam, mas não explodiam — acrescenta.

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A cerca de 20 km de Zaporíjia, em outro ponto do rio onde foi descoberta mais uma bomba, ossos humanos também foram encontrados nos últimos dias. Os serviços de emergência ucranianos não sabem se pertencem a soldados soviéticos ou nazistas que lutaram na região. É fácil ver os efeitos do rebaixamento da água na área. O rio tem uma espécie de nova praia em seu caminho pela cidade, o que se tornou uma atração para os habitantes. Não é um lugar muito agradável de se estar porque, em vez de areia, o solo é feito de lama e há grandes canos de drenagem visíveis.

— Nunca vi o rio em um estado tão terrível — lamenta Grigori Markov, 76 anos, enquanto examina a área com um neto. — Vejo o que nossos irmãos [referindo-se aos russos] fizeram e tenho que me sentir ofendido, insultado e magoado. As pessoas costumavam vir aqui para relaxar, pescar, e vejam no que se transformou, as rochas que se erguem ali, impedindo a navegabilidade.

Como parte da batalha em Zaporíjia durante a Segunda Guerra Mundial, as tropas locais, em uma ação semelhante à que ocorre hoje em Nova Kakhovka, explodiram a grande represa construída no Dnieper. Dezenas de milhares de pessoas — até 100 mil de acordo com algumas fontes — morreram na operação em 18 de agosto de 1941.

— Tudo foi inundado, inclusive parte da munição. Muitos projéteis ficaram submersos após a detonação do DniproHES — explica Svitlana Volodimorivna, fazendo referência a como é conhecida hoje a usina hidrelétrica, a maior da Ucrânia e uma das maiores da Europa.

Foi Josef Stalin quem pediu a seus agentes secretos da NKDV — que mais tarde se tornaria a KGB — que explodissem a represa para impedir o avanço nazista.

— Havia uma ordem de Stalin para destruir tudo, como ele mesmo escreveu na época, fossem celeiros de pão ou fábricas. Tudo tinha que ser destruído. Essa era a política de um homem mentalmente doente como ele. Há muitas evidências disso na História russa, para as quais não há explicação humana — diz ela.

A recente destruição de Nova Kakhovka não foi tão letal quanto a de 82 anos atrás. Mas ela é semelhante por também ter provocado o perigoso deslocamento de explosivos em campos minados numa área onde o rio Dnieper divide os dois exércitos. As instalações da represa e da estação hidrelétrica de Nova Kakhovka estavam nas mãos das tropas invasoras e os dados disponíveis sugerem que a destruição foi causada por explosivos colocados pelos russos.

Na sede do Museu Regional de Zaporíjia, não há muito interesse quanto ao destino dos achados arqueológicos que estão vindo à tona recentemente com o rebaixamento do leito do rio Dnieper. Eles estão mais preocupados com o patrimônio de sua coleção permanente. Muitas das peças não são exibidas há meses, pois foram removidas e levadas para locais seguros por medo de que os russos ocupassem a cidade, explica Irina Anatolivna, funcionária da exposição.

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Não seria a primeira vez que invasores atacam museus e galerias ou simplesmente os destroem. Até o final de 2022, mais de 1.100 elementos do patrimônio cultural da Ucrânia (arquitetura, museus, escolas, universidades ou centros culturais) haviam sido danificados e mais de 400 destruídos, de acordo com o Ministério da Cultura ucraniano. Em Kherson, o resultado da ocupação foi, entre muitas outras tragédias, o roubo dos dois principais museus da cidade, libertada pelo Exército russo em novembro passado.

Irina Anatolivna, no entanto, abre a fechadura de uma sala que mostra a História da Ucrânia desde sua independência da União Soviética em 1991 até os dias atuais, quase literalmente. É surpreendente ver um espaço que está mais do que vivo, pois há apenas algumas semanas parte de um míssil S-300 lançado pelos russos em maio passado foi colocado sobre a cidade de Vilniansk, nos arredores da capital regional.

— As crianças se divertem porque, para elas, parece uma máquina de lavar — conta a funcionário do museu.

Há também homenagens aos que morreram durante a atual invasão russa ou durante a revolução de Maidan em 2014. As armas passaram por intervenções de artistas locais. A alguns metros de distância, no chão, estão os restos de um drone de fabricação iraniana lançado em 10 de fevereiro contra as instalações da hidrelétrica de DniproHES.

— Veja o cinismo — diz Anatolivna, apontando para a mensagem que os russos deixaram escrita com caneta preta ao lado de uma das asas do drone: "Vamos acender as luzes".