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'Vivi para contar': escritor diz que 'a impressão que está dando é que Netanyahu não manda mais' em Israel, e sim a extrema direita

Gabriel Paciornik, há mais de 20 anos no país, foi para as ruas e participou da união nacional pela democracia nas manifestações contra a reforma do Judiciário, que teve a primeira etapa aprovada nesta segunda-feira

Agência O Globo - 24/07/2023
'Vivi para contar': escritor diz que 'a impressão que está dando é que Netanyahu não manda mais' em Israel, e sim a extrema direita
Gabriel Paciornik - Foto: Reprodução

O escritor Gabriel Paciornik foi à primeira manifestação em Tel Aviv contra a reforma do Judiciário proposta pelo governo de Benjamin Netanyahu. E não saiu mais das ruas. De lá para cá, ele contou ao GLOBO que viu o movimento de oposição crescer, ao longo dos meses, em torno do “despertar de uma identidade” democrática, oposta à agenda ultraconservadora do governo. Horas após a aprovação nesta segunda-feira da primeira parte da reforma na Knesset, ele diz que a percepção nas ruas é a de que Netanyahu “não manda mais” em Israel. Ficou ainda mais explícito, frisa, que quem manda hoje são os integrantes ultraconservadores de seu gabinete. E que é preciso mais do que nunca lutar para um Israel democrático e secular.

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“Eu fui a todas as manifestações. Fui na primeiríssima manifestação, nós éramos menos de 2 mil pessoas, em Tel Aviv, no meio do inverno, e foi extremamente deprimente. A impressão que eu tinha era que só eu estava percebendo o que estava acontecendo e que ninguém ia se levantar, ninguém ia fazer nada. E bastante rápido, já na terceira manifestação, já tinha 80 mil pessoas. Na quarta, chegamos a 100 mil. As coisas começaram a crescer, as manifestações começaram a se espalhar pelo país inteiro. É uma coisa impressionante ver o despertar de uma identidade e ao mesmo tempo deprimente, porque eu não sei o fim dessa história, e não saber o fim dessa história torna a sensação de ansiedade muito mais forte do que qualquer outra.

Eu cheguei aqui em 1997. Israel já estava inserido dentro de um processo que começou em 1995 quando foi assassinado o primeiro-ministro, (Yitzhak) Rabin. E é um processo que na verdade começou, se for puxar o fio, depois da guerra de 1967 (Guerra dos Seis Dias, quando Israel enfrentou Egito, Síria e Jordânia e ampliou o território, incluindo a Cisjordânia). Isso é muito criticado externamente, a questão das colônias (assentamentos israelenses em territórios palestinos ocupados na Cisjordânia), mas a verdade é que existe uma tensão muito grande no país, pessoas contra e pessoas a favor, mas isso nunca irrompeu da maneira como está acontecendo agora. Exatamente esse é o assunto. São pessoas que estão desesperadas para manter o sistema político para poder manter a colonização da Cisjordânia e a subjugação do povo palestino e criar uma espécie de Teocracia em Israel. E, ao mesmo tempo, pessoas que não tinham essa visão — e sempre se debateram, em quem votar, e nunca foram muito unidos, porque tem uns mais de esquerda, outros mais de direita — acabaram sobrando, foi o que aconteceu nessas últimas eleições, que uma coalizão tão extremista conseguiu vencer porque o bloco deles votou unido.

E uma das coisas mais bonitas de ver, nesse processo todo, foi o que aconteceu agora, que, de repente, existe um bloco, democrático, liberal, consciente, que se levanta e se une e diz: nós também temos uma agenda. Nós não somos religiosos, mas também pertencemos ao povo judeu, essa é a minha identidade, vocês não vão roubar isso de mim e vocês não vão fazer uso político disso contra mim. Isso é a primeira vez que acontece em Israel de forma tão organizada. Se nós sairmos dessa, vai sair um bloco político muito interessante que vai realmente mudar o cenário político de Israel.

Provavelmente as manifestações vão continuar, talvez com um pouco menos de força porque, em breve, a Knesset de novo entra em férias e é um momento que vai ter muito menos coisas acontecendo para as pessoas reagirem nas ruas, mas não porque elas estão menos engajadas, pelo contrário, as pessoas se tornaram mais engajadas. A segunda coisa que vai acontecer é um período de debate muito sério a respeito dos reservistas. Pouco tempo atrás, mais de 10 mil reservistas avisaram que, se a lei passasse, eles não iam voltar para fazer o serviço de reserva deles, isso no caso de pilotos é seríssimo, porque eles precisam, pelo menos, uma vez por semana, fazer um pequeno treino para estarem prontos para qualquer coisa. E eles não aparecendo, eles não podem mais voar tem que refazer todos os cursos. Eu tô falando também de oficiais, de generais, inclusive, gente em altíssimos postos. A gente vai ver um debate a respeito disso, muita gente se manifestando a favor e contra. A pergunta é, o que é que os reservistas vão fazer? E a terceira coisa, a gente vai ver uma crise econômica seríssima, porque o mercado não espera, o mercado vê a direção onde as coisas estão indo e diz muito obrigado, mas não obrigado.

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Medida aprovada no Parlamento

O problema é que Israel não tem uma Constituição. O equilíbrio entre os poderes Judiciário, Executivo e Legislativo se dá a partir de uma série de leis básicas que são um arremedo de leis criadas ao longo do 75 anos de Israel que se prestam a dar esse equilíbrio. E a razoabilidade é um mecanismo em que o Judiciário pode intervir em decisões do governo quando são consideradas não razoáveis. Decidiu-se apontar para ela como sendo um dos problemas graves dessa relação. A direita que agora está no poder afirma que ela causa um desequilíbrio em favor do Judiciário, quando de fato não é porque o Judiciário praticamente não fez uso dessa lei ao longo dos anos.

Ela (a mudança na lei) vai permitir ao governo tomar decisões, como, por exemplo, entregar um cargo de responsabilidade a alguém que não tem nenhum conhecimento ou familiaridade compatível. O que vai acabar acontecendo é que os políticos vão se utilizar disso para trazer colaboradores para fazer um serviço que é extremamente técnico. Logo em seguida vão surgir tentativas de avançar o processo de corrosão do Judiciário através da aprovação de outras leis. No momento em que o Judiciário não tem mais a capacidade de julgar uma lei como sendo não razoável, a Knesset vai se sentir na posição de aprovar leis menos razoáveis ainda, por exemplo, mudança na Comissão responsável pela escolha de juízes, que é a parte mais importante para o Yariv Levin, que é o Ministro da Justiça. Esse é o grande objetivo dele. No caminho, vão ter várias tentativas de aprovar leis contra as minorias, LGBT, contra árabes-israelenses, a maneira como colônias estão sendo fundadas (em territórios palestinos ocupados), praticamente não foi fundada nenhuma, desde os anos 80, isso pode mudar com muita facilidade. Pode mudar também a maneira como o governo reage a ataques externos, ou mesmo para fazer um ataque preventivo, contra o Irã, por exemplo, vai exigir muito menos base do Supremo.

Desde o momento que nós começamos a conversar, já houve 3 pedidos (de revisão da medida na Suprema Corte), vai haver mais. Eu não sou jurista e é uma questão muito delicada, muito acadêmica, porque, por um lado, você tem a questão do derretimento da democracia, de uma lei que tira força da democracia, ou seja, uma necessidade do Supremo votar contra, por outro lado, é um arremedo de uma outra lei considerada lei básica, então o Supremo, teoricamente, não teria como mexer na decisão do governo. Então não há uma certeza de que o Supremo vá derrubar essa lei. Há esperança da sociedade civil de que isso aconteça, mas não há nenhuma certeza disso.

'Netanyahu não manda mais'

A impressão que está dando é que o Netanyahu já não manda mais. No momento, quem manda é o Yariv Levin (ministro da Justiça), o Itamar Bem-Gvir (ministro da Segurança Nacional) e o Bezalel Smotrich (ministro das Finanças), que são os parceiros de coalizão dele, são radicais (de extrema direita) e eles que estão mais ou menos comandando a situação. Não sei a respeito das ambições do Netanyahu, a princípio a maior ambição dele é se manter no governo, um governo funcional, pelo menos no ponto de vista de maioria e, certamente, evitar que o julgamento dele continue. E nesse ponto a gente não sabe o que ele pretende fazer. O que foi dito aqui, no dia tenso que foi hoje, é que o Netanyahu estava disposto a adiar a votação, de fazer uma pequena concessão à oposição, só que, posto isso ao partido dele, o Likud — que na verdade, quem manda hoje, é o Yariv Levi — e aos parceiros de coalizão, eles recusaram, não deixaram isso acontecer, isso dá a imagem da fraqueza que o Netanyahu tem, hoje em dia, para comandar o governo." (Gabriel Paciornik, em depoimento a Aline Rabello)