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Em tempos de crise, virgens que choram sangue fascinam europeus, mas há quem aponte golpes

Guerra, desinformação, conspiração e terraplanismo impulsionam crença em fenômenos do tipo, mas denúncias também aumentaram, alertam especialistas

Agência O Globo - 20/07/2023
Em tempos de crise, virgens que choram sangue fascinam europeus, mas há quem aponte golpes

No terceiro dia de cada mês, centenas de fiéis rezam diante da estátua da Virgem de Trevignano, perto de Roma, e juram que ela chora lágrimas de sangue. A imagem, protegida por vidro, fica em um grande terreno com vista para o Lago Bracciano, ao lado de uma grande cruz azul, um altar e bancos de madeira. Seus devotos atribuem-lhe virtudes milagrosas.

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Tudo começou em 2016, quando Gisella Cardia, uma siciliana de 53 anos, voltou de uma peregrinação à Bósnia e Herzegovina com uma estatueta nas malas. Ao retornar a Trevignano Romano, 50 quilômetros ao noroeste da capital italiana, ela contou tê-la visto chorar e multiplicar pizzas e nhoques, em uma versão local do "milagre da multiplicação dos pães" narrado nos Evangelhos.

Chamada de "a vidente" pelos peregrinos, esta mulher de cabelos loiros, que poderia ser uma moradora ordinária, também afirma ter a pele marcada por estigmas e faz profecias sobre temas como a pandemia de Covid-19 e a guerra na Ucrânia.

Mas em Trevignano, uma pequena e elegante comuna turística, Cardia e seus supostos milagres irritam os habitantes, que reclamam do "golpe gigante" e das idas e vindas dos fiéis.

— Se não for verdade, o que considero bastante provável, ela terá abusado da fraqueza das pessoas em um momento em que tanta gente está mais frágil. Isso me dá raiva — disse à AFP Maria Alessandra Conti , aposentada de 72 anos.

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Negócio proveitoso

As críticas se voltam principalmente por conta da faceta financeira: graças ao sucesso gerado pelo boca a boca, Cardia, uma ex-empresária condenada em 2013 por falência com fraude, fundou uma associação oficialmente dedicada a ajudar pessoas doentes.

A associação iniciou um negócio proveitoso, alimentado por doações individuais, como a de um homem que doou 123 mil euros (cerca de R$ 662 mil). Mas, desde então, alguns desses doadores denunciam terem sido ludibriados.

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O caso ganhou visibilidade em março, quando a imprensa noticiou que o tal sangue derramado era na verdade de um porco, citando como fonte um detetive particular. Depois disso, a Justiça abriu uma investigação contra Cardia e o local corre o risco de ser demolido.

Forçada a reagir, a diocese católica local criou uma comissão de investigação própria. Enquanto aguarda as conclusões, o bispo pediu aos fiéis que evitem participar das reuniões públicas no local e aos padres que não se manifestem sobre o assunto.

— Trevignano não deveria ser considerado como uma aparição — afirma o padre Salvatore Perrella, teólogo e presidente da Associação Mariológica de Roma. — Sabemos há algum tempo que a suposta vidente não é confiável.

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'Prova irrefutável'

Desde as lacrimações da Virgem das Lágrimas em Siracusa, na Sicília, em 1953 — a única oficialmente reconhecida por um papa, após mensagem de Pio XII —, são muitos os fenômenos registrados do mesmo tipo na Itália com estatuetas da Virgem Maria, de Cristo ou de outros santos.

Um dos casos mais famosos do país — que tem 74,5% de seus 59 milhões de habitantes católicos — diz respeito à liquefação do sangue de "San Gennaro", padroeiro de Nápoles que, segundo a crença popular, ocorre três vezes ao ano.

O atual fenômeno da Virgem com lágrimas de sangue foi levado à TV em 2018 por Niccolò Ammaniti, criador da série "Il Miracolo" ("O Milagre").

Para além das fronteiras italianas, há muitos casos semelhantes de estatuetas que jorram água, óleo ou perfume, de Naju, na Coreia do Sul, à ilha francesa da Reunião. E a Igreja afirma que alguns deles são, de fato, "cientificamente inexplicáveis".

Já os cientistas oferecem explicações racionais: condensação do ar, exsudação de verniz, diferença de densidade, reação química da tinta à umidade...

No entanto, "a ciência não basta para questionar as crenças", destaca Romy Sauvayre, especialista em ciências e crenças no Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica (CNRS).

— A partir do momento que alguns têm a impressão de ter sentido algo, para eles é uma prova irrefutável. O cientista pode falar o que quiser, eles não acreditarão — explica.

Fervor

O próprio Papa Francisco alertou contra certas "aparições", em uma alusão velada à Virgem de Trevignano, durante entrevista em junho. No entanto, outro sumo pontífice, João Paulo II, foi sensível a uma Virgem com características semelhantes, a de Civitavecchia, também na Itália, onde, em 1995, uma família alegou que uma estatueta de gesso derramou lágrimas de sangue.

Nesse caso, especialistas mostraram que as secreções vinham na verdade do sangue de um homem. Os donos da estatueta sempre se recusaram a fazer um exame de DNA. Mas o fervor sem precedentes causado pelo tema, nunca reconhecido oficialmente pelo Vaticano, permanece intacto.

Nas paredes de pedra da igreja localizada em uma área arborizada perto desta cidade portuária, ao norte de Roma, os visitantes se deparam com fotos da "Madonnina" (pequena Virgem) com as bochechas vermelhas de sangue.

Tendas foram erguidas para receber mais fiéis. Comerciantes ambulantes vendem rosários, imagens, ícones e outros objetos de devoção.

Civitavecchia fica a apenas uma hora de carro de Trevignano, mas o principal ponto em comum entre suas duas Virgens está no outro lado do Mar Adriático: as duas estatuetas vêm de Medjugorje, na Bósnia e Herzegovina, famosa por seu santuário mariano, que recebe anualmente cerca de dois milhões de peregrinos, incluindo brasileiros.

Nesta cidade, onde os fiéis acreditam na aparição da Virgem Maria desde 1981, as estatuetas são feitas com pó de pedra misturado com resinas sintéticas, conhecidas por sua resistência.

Na oficina de Ivan Perutina, 20 trabalhadores fabricam cerca de 400 estatuetas por dia. Algumas são exportadas para Croácia, Polônia, Portugal e Itália.

O gerente desta empresa familiar disse à AFP que ouviu "algumas coisas fora do comum". Como quando um de seus clientes em Portugal lhe disse que a estatueta emanava aromas de lavanda e rosa.

— Não incluímos nenhum aditivo — jura.

Outro trabalhador explica que as estatuetas pequenas não têm uma cavidade interna que permita trapaças. Elas poderiam ser fabricadas de forma enganosa para fazer as pessoas acreditarem em milagres?

— Não! Deus nos livre disso! — rebate Perutina.

Prudência da Igreja

Nestes casos, a Igreja Católica permanece muito prudente e deixa que cada diocese se pronuncie individualmente.

— De forma alguma podemos basear a fé na credulidade popular — adverte o padre Salvatore Perrella. — O Vaticano, justamente por ter muita experiência nessas situações, é muito rigoroso.

Em abril, foi criado um observatório internacional de fenômenos místicos ligados à Virgem Maria, com o objetivo de analisar os diferentes casos que aguardam autenticação. Essa estrutura busca ajudar os bispos pois "muitos não sabem como abordar o assunto", explica seu presidente, o padre Stefano Cecchin.

Tempos de crise, guerra, desinformação, conspiração e terraplanismo favorecem o fascínio por esse fenômeno, destacam os pesquisadores. Em algumas pessoas há "a percepção de se viver em tempos proféticos", diz Roberto Francesco Scalon, sociólogo em religiões e professor da Universidade de Turim.

— Quando estão em uma situação de incerteza, ligada à pandemia ou a um problema financeiro, as pessoas buscam respostas. Elas querem esperança — afirma a socióloga em ciências e crenças, Romy Sauvayre.

Em Trevignano, apesar do escândalo, a associação da Virgem convoca novos encontros, embora o último, em 3 de julho, tenha registrado um fluxo menor.

— Não deem ouvidos aos rumores — diz um diretor ao telefone. — Hoje, informações falsas estão por toda parte.