Internacional

Artistas com nanismo defendem tradição de touradas 'cômicas', proibidas por lei, na Espanha: 'é nosso direito ao trabalho'

Apresentações viraram uma espécie de guerra cultural no país, mas são meio de subsistência para membros de companhias itinerantes

Agência O Globo - 13/07/2023
Artistas com nanismo defendem tradição de touradas 'cômicas', proibidas por lei, na Espanha: 'é nosso direito ao trabalho'

Depois de uma viagem de quase sete horas, o ônibus que transportava "O toureiro Popeye e seus anões marinheiros" diminuiu a velocidade e parou próximo ao ringue de touradas em Teruel, na Espanha. Uma banda de instrumentos de metal, palhaços, crianças, esposas, bebês, o líder da companhia e sete artistas com acondroplasia, um distúrbio de crescimento ósseo que causa o tipo mais comum de nanismo, espalharam-se sob o sol.

'Encierros': Seis pessoas ficam feridas na primeira corrida de touros do festival de San Fermin, na Espanha

No ano passado: Três pessoas morrem após tradicional corrida de touros em Valência, na Espanha

— Teruel — disse Jimmy Muñoz, um toureiro cômico de 57 anos com essa condição, ao descer do ônibus. — Um lugar muito difícil.

No Leste da Espanha, a cidade é conhecida principalmente por sua arquitetura mudéjar islâmica, a história de seus amantes medievais e uma densidade populacional tão baixa que gerou um partido político chamado Teruel Existe.

Mas Muñoz estava se referindo ao novo status da cidade na linha de frente de uma guerra cultural com sobreposições políticas entre os conservadores defensores das tradições de touradas da Espanha e os liberais que as consideram brutais, retrógradas e, no caso de shows cômicos em que alguns dos artistas com acondroplasia enfrentam touros menores de um ano, ilegais.

Para a "fiesta" anual em julho, Teruel — cuja fundação remonta a soldados cristãos repelindo um ataque muçulmano de touros com seus chifres em chamas e especialmente um que sobreviveu para fazer uma sesta — rejeitou uma lei de maio aprovada pelo Parlamento espanhol que parecia proibir touradas cômicas. A lei proibiu "shows ou atividades de lazer" que usam uma deficiência "para provocar zombaria pública, ridículo ou escárnio".

— Esses programas ridicularizam, humilham, zombam e difamam as pessoas — disse Felipe Orviz, 43 anos, advogado e ativista que também tem acondroplasia.

Enquanto o ônibus do Popeye seguia em direção a Teruel, o advogado ameaçou entrar com ação legal se o show continuasse e contou como as pessoas o confundiram com um artista e gritaram: "Olhe para o anão toureiro", para ele durante as "fiestas". Os shows, disse ele, "são ilegais".

Tragédia: Queda de arquibancada deixa ao menos quatro mortos e dezenas de feridos em tourada na Colômbia

Contudo, os defensores do show citaram outra cláusula da lei, que afirma que "as pessoas com deficiência participarão de shows públicos e atividades recreativas, incluindo touradas, sem discriminação".

Benito Ros, um funcionário da região de Aragão com sede em Teruel, argumentou que os toureiros cômicos estavam provocando risadas por suas brincadeiras, não pela estatura, e que bani-los era discriminar seu direito ao trabalho.

— Nossos especialistas jurídicos dizem que [os shows] podem prosseguir porque não estão provocando zombaria — disse Ros. — Tenho a consciência limpa.

'Este é nosso sonho'

No dia do show, o escritório de Ros enviou ao organizador do evento, David Gracia, 47 anos, a autorização final enquanto ele verificava os touros furiosos nas arquibancadas.

— Estamos defendendo a liberdade. Eles estão tentando transformar este país em uma ditadura moral — disse Gracia. — Estou arrepiado falando sobre isso.

Alguns minutos depois, o ônibus chegou.

— Vamos, pequeninos — gritou Juan Ajenjo, o Popeye, que não tem acondroplasia, usando o termo que os artistas também usavam para se descrever.

No ramo há 42 anos, ele viu o número de shows despencar nos últimos 15.

— Não é bom — disse ele sobre a nova lei. — Os políticos não querem que os pequenos trabalhem.

Mas eles trabalharam. Em meio a tantas idas e vindas entre ativistas, advogados e políticos, os artistas — vários dos quais confrontam touros de verdade durante o show — disseram que precisavam do dinheiro, ganhando entre 150 e 400 euros por dia (algo em torno de $R 800 a R$ 4 mil). Ao contrário de seus shows como garçons ou em discotecas, esta era uma performance da qual eles se orgulhavam, disseram vários deles. E eles tiveram que continuar com o show.

— Somos artistas e este é o nosso sonho — disse Muñoz, casado e pai de dois filhos, que veio do Equador para a Espanha há 30 anos. — Este é o nosso direito ao trabalho. Eles não podem tirá-lo de nós. Há uma família que precisa se alimentar por trás disso tudo.

A tropa saiu às ruas para distribuir pilhas de panfletos que, como a primeira página do Diário de Teruel daquele dia, os anunciavam como "marinheiros anões". Uma banda tocando trombones e tubas seguia atrás.

— Não concordamos com as touradas — disse Mariano Mateo, 66 anos, um professor de psicologia aposentado que ganhou um panfleto. — E isso é ainda pior.

Hora do show

Os artistas cruzaram uma ponte e entraram na principal Praça de Torico, onde na noite anterior crianças locais fugiam de carrinhos de mão equipados com cabeças de touro e chifres, e agora centenas esperavam na fila para assistir ao show.

A banda tocou e os artistas dançaram ao pé da coluna, e Ezequiel Gonzalez, 67 anos, bateu palmas junto com os netos. O show foi "divertido e educativo", disse ele, acrescentando, "as crianças perguntaram se eram reais", referindo-se aos artistas.

Cerca de meia hora depois, alguns dos artistas respiraram na sombra. Um fugiu para um dia na cidade e outros aceitaram a iguaria local de pão, presunto e pimenta vermelha que a prefeita distribuiu a centenas para celebrar a festa.

"Depois de falar com os artistas", disse a prefeita, Emma Buj, ficou claro que eles "se consideram toureiros".

Os artistas deixaram a praça, resmungando por não terem tido tempo de realmente almoçar, e voltaram para o camarim da praça de touros, um espaço veterinário reformado que cheirava a serragem e estava cheio de araras de uniformes, sacos de perucas e caixas cheias de ícones religiosos, trompetes de plástico e roupas de palhaço.

— Vamos lá fora — gritou Ajenjo, 69 anos, apenas com um par de chinelos, óculos escuros e shorts azuis enrolados até a virilha.

A bandeira espanhola estava tatuada na panturrilha esquerda e a silhueta de um touro na direita.

Os artistas tiraram as camisas verdes oficiais da empresa Popeye, apagaram os cigarros e voltaram ao trabalho.

No meio da arena, sob um sol forte, Ajenjo apitou furiosamente, e os artistas entraram no ringue em fila única para o ensaio enquanto a banda tocava "Brazil". Muñoz sacudia maracas, Anderson Torres Perez, 32 anos, tocava bongô, Patrícia Rotundo, 40 anos, tocava um pandeiro.

A metade sombreada da praça de touros começou a se encher de famílias. Os espectadores bebiam cerveja e cuspiam sementes de girassol. Muñoz surgiu com um chapéu estilo sombrero, colete e gravata borboleta combinando.

— Não queremos caridade — disse ele. — Queremos trabalhar.

O show começou. Muñoz e Torres Perez realizaram sua apresentação enquanto dois outros homens entravam no ringue em trajes de touro.

Então um touro de verdade entrou — jovem, mas ainda de tamanho intimidador. Ele olhou para o espetáculo à sua frente e quase imediatamente pulou a cerca. Após um momento de pânico, os organizadores o colocaram de volta no ringue, e Ajenjo, Muñoz e Torres Perez lutaram com capas, guarda-chuvas e uma bola de ginástica pintada. Pabon, cheio de coragem, deu-lhe um soco com luvas de boxe e perdeu um sapato.

— Vou dizer algo importante — disse Ajenjo, sem fôlego, ao microfone após a saída do touro. Apontando para sua empresa, ele disse que eles eram mestres em seu ofício e concluiu: — Os políticos atuais querem tirar seus direitos. Muito obrigado.

No final, os artistas apareceram na arena com camisas de marinheiro listradas de rosa, e Ajenjo, em um terno de marinheiro Popeye azul, enfrentou um jovem touro negro feroz. A multidão rugiu, especialmente quando Ajenjo fez círculos ao redor do touro em uma motocicleta.

Mas então ele foi ferido na perna e foi levado às pressas para a enfermaria. Enquanto a ex-mulher roía as unhas pintadas de rosa, a empresa deu uma volta elogiosa. Os marinheiros agitaram seus chapéus de marinheiro. Os palhaços carregavam seus filhos nos ombros.

De volta ao camarim, os artistas aplaudiram quando Ajenjo mancou de volta para se juntar a eles com uma bandagem na coxa.

— São artistas — disse emocionado. — Como toureiros ou atores pornôs, é a mesma coisa.

Todo mundo se trocou e fez as malas. Na arena, os adolescentes que esperavam impacientemente desceram ao ringue para o evento principal — testando sua coragem e esquivando-se de jovens touros. Nos bastidores, os trabalhadores mataram o primeiro touro que havia sido parte do show. Os trabalhadores arrastaram sua carcaça pelo pátio até um matadouro enquanto os artistas levavam suas malas em direção à saída.

— Viemos com medo de que não nos deixariam tocar — disse Muñoz ao embarcar no ônibus para a longa viagem de volta a Madri.