Política

A “Caravana da Esperança” de Palmeira dos Índios: crônica de uma aventura político-afetiva

07/01/2023
A “Caravana da Esperança” de Palmeira dos Índios: crônica de uma aventura político-afetiva

O local escolhido para o começo de nossa jornada foi a frente de uma garagem na José Pinto de Barros, antiga Pinga-Fogo, conhecida também como a rua da casa de Graciliano Ramos, escritor e prefeito que há nove décadas inventou, na prática, o que hoje chamamos de transparência pública e orçamento participativo. Exatamente ali funcionou a primeira empresa de transporte rodoviário de cargas e de pessoas da cidade alagoana de Palmeira dos Índios, nos anos 1930. Foi dali que partiu, na década seguinte, o pau-de-arara que levou para São Paulo Dona Lindu e seus filhos pequenos, após recolhê-los em Caetés, agreste de Pernambuco. Dali também começou a nossa viagem, às 4 horas da manhã do dia 29 de dezembro de 2022, para assistir à posse de um dos filhos de Dona Lindu para seu terceiro mandato como presidente da República Federativa do Brasil.

Fui o primeiro conduzir o carro. Cocada deu a bandeirada vermelha, anunciando a largada da nossa Caravana da Esperança. Jarbas filmou a cena. Vídeo postado no Insta, todos a bordo, seguimos viagem. Há mais de um ano havíamos prometido fazê-la juntos, naquele mesmo carro, que permaneceu adesivado desde a pré-campanha. A plotagem “Tô com Lula, Tô com Paulão” no vidro traseiro do Sandero só seria retirada após a posse, em Brasília. E tudo se cumpriu conforme o desejado e – tão importante quanto – o planejado.

Amanhecemos no Alto Sertão. Primeira parada: Maria Bode, encruza famosa que dá acesso ao Carié, de onde vínhamos, Delmiro Gouveia, à nossa esquerda, Pariconha, à nossa direita, e Paulo Afonso, à nossa frente. Cafezinho tomado em Maria Bode, seguimos para Jardim Cordeiro, último povoamento de Alagoas antes de chegarmos à Bahia. Antigo acampamento de trabalhadores da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), o povoado tem esse nome em homenagem ao parlamentar que alocou recursos para a construção de casas que substituíram os barracos dos primeiros moradores: o jornalista Albérico Cordeiro, que também foi prefeito de Palmeira dos Índios por dois mandatos, além de deputado federal por cinco legislaturas.

Na ponte de ferro sobre o Rio São Francisco, outra pausa para fotos. Os cânions são como um portal para outro mundo. Nos maravilha e nos dá medo. Nos atrai e nos assombra. Mas era preciso atravessar a ponte, e enfrentar dois dias atravessando só a Bahia, um estado-país dentro do nosso país-continente. Nos bateu a sensação de que estávamos saindo de casa rumo à realização de um projeto com desfecho incerto. Deixamos nossas famílias apreensivas. Muita gente disse que éramos corajosos diante do clima de ódio e medo que se institucionalizou no país nos últimos quatro terríveis anos. Mas sob ameaças, de um modo ou de outro, nós, que militamos em tantas causas que desafiam as estruturas do mundo capitalista, sempre estivemos. Como disse a companheira e mártir Margarida Alves, “medo nós têm, mas não usa”. Não seria o bolsonazifascimilicianarconeonegaciopentecostapitalismogenocida a nos intimidar. Não àquela altura. Afinal, esse monstro havia sido definitivamente derrotado pelo voto popular no último pleito, de modo limpo, transparente e legítimo. Depois de tanta e sofrida luta, era necessário celebrar. Com muito gosto. Numa festa do tamanho do Brasil. E, eita, que o bicho é muito grande!

No povoado Riacho, tomamos um café mais aprumado: macaxeira, batata doce, cuscuz e galinha guisada, e conhecemos a família de Ni Vaqueiro e dona Inha, dois irmãos que fizeram questão de nos mostrar as relíquias que guardam consigo. Ni Vaqueiro, poeta e cantador de toada, nos convidou a conhecer a sua barbearia, enquanto dona Inha varria o terreiro vestida numa camisa vermelha com estampa do Lula. Nas paredes do salão do Ni, molduras com cartazes de campanha de Lula e Dilma. Atrás de uma delas, ele nos mostrou, orgulhoso, os autógrafos de Lula, Dilma e Jaques Wagner. Em outra, ele indicou a cobertura que fez no nome do vice da Dilma, “aquele golpista safado”, com uma fita isolante. Mais café, desejos de boa viagem, que Deus nos abençoe, amém, a nós todos, e seguimos, com gratidão e ânimo para cumprir a primeira etapa da jornada, na qual eu conduziria a caravana em parte dos sertões descritos por Euclides da Cunha. Passamos por Jeremoabo, Cícero Dantas, Ribeira do Pombal, Cipó, Nova Soure, e, pelo Paiaiá, pegamos a estrada para Inhambupe, e fomos até Alagoinhas. De lá, tomamos o rumo de Lustosa e Conceição do Jacuípe.

Por volta das treze e trinta chegamos em Feira de Santana, a primeira cidade a ser conhecida no Brasil pelo apelido de Princesa do Sertão, título imitado em Alagoas por nossa Palmeira dos Índios. Pausa necessária para o almoço. Foi a primeira vez entre as raras que encontramos bolsonaristas declarados pelo caminho: um grupo numa mesa próxima à nossa, resmungando que “se fosse para ir atrás de Jesus ninguém quereria ir para Brasília”. Nenhuma. Sabíamos de qual “Messias” eles quereriam ir atrás. Batemos nosso rango quietos, pagamos e fomos embora. Praticamente, por todo o trajeto, o que tivemos foi boa recepção. Pela estrada, era muito comum passar alguém por nós buzinando, fazendo o “L”, agitando bandeiras. Deixando a maior cidade interiorana do Nordeste, Cocada nos conduziu por quase cinco horas até Palmeiras, aonde chegamos à noite e pousamos.

No dia seguinte, amanhecemos na feira, no centro da cidadezinha turística. Tomamos café com pão e manteiga numa tolda com dona Bia e seu Joaquim. Moradores do lugar, chamados de palmeirenses, o mesmo gentílico nosso, eles estavam, também como nós, animados para a posse do Lula. “O veinho vai voltar, pra o povo viver bem de novo”, dizia dona Bia soprando o café, paninho amarrado na cabeça, cobrindo os cabelos brancos.

Às nove da manhã, subimos o Morro do Pai Inácio, conhecidíssimo monumento natural do Parque Nacional da Chapada Diamantina, no meio da Bahia. No alto, contemplando uma das vistas mais bonitas deste mundo, mesmo sob a neblina que nos envolvia, conhecemos funcionários públicos de uma mesma família, dentre eles um policial antifascista – todos paraibanos, a caminho de Brasília.

Às dez e meia pusemos o pé na estrada novamente. Com base no que nos havia informado o companheiro Izael, presidente do Sinteal, que passara pelo trecho um dia antes, tivemos mais cuidado nas estradas esburacadas entre Seabra e Ibotirama, descendo para Bom Jesus da Lapa, próximo ponto de parada de nossa romaria, para visitar o santuário homônimo. Reencontramos o nosso Rio São Francisco. Cruzamo-lo na direção de Santa Maria da Vitória, onde nos aguardava, precisamente em São Félix do Coribe, a companheira Isi Santos, uma amiga que eu conheci no Congresso da Pastoral da Juventude do Meio Popular – PJMP, realizado em Goiânia em 2018. Isi nos presenteou com camisas da Cavalgada de Nossa Senhora Aparecida da Comunidade Caruaru, em Correntina, da qual ela é uma das organizadoras, e nos conduziu em segurança na direção da cidade de nossa próxima dormida.

Anoitecemos em Correntina. Na loja de conveniência de um posto, à entrada da cidade, mais café. Fernanda, a atendente, nos serviu gratuitamente a bebida, ao saber que estávamos em caravana para a posse. Indicou-nos uma pousada logo atrás. Para nossa sorte, havia vagas. E, para a nossa maior alegria, todos os hóspedes estavam a caminho da posse do Lula em Brasília. Em pouco tempo, estávamos todos entrosados. A caravana baiana tinha pessoas de Ilhéus e Itabuna. Entre elas, Amanda Santos, companheira do PCdoB, sindicalista, comerciária e amante de manga. O Boni era de Recife, reconheci pelo sotaque inconfundível, e fazia parte da caravana “PEBA”, composta por pernambucanos (PE) e baianas (BA) da própria região da Chapada. Uma das componentes, a mais velha do grupo, nos disse que sempre militou em movimentos feministas, mas sem ser filiada a partidos políticos. Foi após o golpe contra a presidenta Dilma que ela sentiu a necessidade de se organizar também partidariamente, e escolheu o PT, no qual é filiada até hoje.

Jarbas assumiu o volante até o distrito de Rosário, ainda no município de Correntina, já na divisa da Bahia com Goiás. Duzentos quilômetros atravessando o “geralzão”, vendo o cerrado se transformar em monoculturas de milho e soja. Fazendas enormes e sofisticadas, agronegócio fortíssimo, maquinário pesado, aviões jogando agrotóxicos sobre as plantações… Ora, o cerrado é uma espécie de Amazônia ao contrário. A Floresta Amazônica tem muito chão alagado e encharcado. Lá, as árvores têm copas altas, com raízes nem tão profundas. No cerrado, onde estávamos, há arbustos com raízes que buscam a direção dos lençóis freáticos e garantem, num processo de evapotranspiração, a umidade na atmosfera. Com a destruição do cerrado para o plantio de soja e outras agriculturas que não têm raízes com o alcance da vegetação típica local, o ciclo das chuvas é prejudicado e há alguns anos temos ouvido falar no fenômeno que há certo tempo era apenas associado ao semiárido nordestino: secas no Sudeste.

Outra reflexão que a travessia quase solitária da nossa caravana por aquele deserto verde nos trouxe era o quão era pequena a nossa Alagoas, praticamente do tamanho de Israel e Palestina: 27.768 km² divididos em 102 municípios. A gente não anda 10 km em qualquer estrada alagoana sem passar por uma habitação ou povoamento. Se a gente sobe uma serra, avista pelo menos umas cinco cidades nos arrabaldes. É tudo muito perto. A Bahia, um pouco maior que a França, tem vinte vezes o tamanho de Alagoas. É onde existe latifúndio de verdade: fazendas que podem rivalizar com o território de reinos europeus. O latifúndio alagoano (microfúndio, em comparação com estados bem maiores) garante poder político local aos agropecuaristas poderosos do nosso estado. Mas seu poder econômico vem mesmo é das terras que eles têm pela região da “MATOPIBA”, que abrange, como sugere o acrônimo, os territórios do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. É terra que não acaba mais!

Última parada em território baiano. Mais um café na conveniência de um posto e troca de motorista. Assumi a direção até o nosso destino. Alvorada do Norte foi nosso portal de entrada no estado de Goiás. Almoçamos na churrascaria perto de Vila Boa, onde reencontramos a caravana de Ilhéus/Itabuna. Faltavam apenas 165 km. Duas horas e quinze minutos para chegarmos. Em Formosa, o coração bateu mais forte. Ao adentrarmos o Distrito Federal, a gente vibrou e começou a cantar alto “A vida do viajante”, de Gonzagão e Gonzaguinha, e emendamos com um “Olê-olê-olê-olá! Lulá! Lulá!”. Ao lado do posto da Polícia Rodoviária Federal havia um ponto de recepção das caravanas. A militância do PT-DF alegremente nos acolheu, orientou, e nos passou as coordenadas do nosso alojamento, na Asa Sul: a moderna Escola Parque 308, fundada em 1961 pelo presidente Juscelino Kubitschek.

Quando chegamos ao alojamento, a primeira pessoa que encontramos foi o companheiro Sibá Machado, ex-deputado federal e ex-senador pelo PT do Acre, acompanhando a caravana de mais de cinquenta pessoas vindas de seu estado, que estariam conosco hospedadas no mesmo lugar. O diretor da escola nos acolheu e nos apresentou a Flor, nosso referencial para resolver qualquer coisa que precisássemos. Flor foi para nós a prova de que pode sim haver bondade num coração bolsonarista. Apesar de ela detestar Cristóvam Buarque, e ser eleitora apaixonada de Arruda, Roriz e do inominável ex-presidente, ela nos tratou muitíssimo bem e não se esquivou de usar o uniforme vermelho padronizado da equipe de trabalho da posse do Lula, porque aceita o resultado da eleição e, portanto, respeita a democracia.

A noite chegou. Alagoas, Acre, São Paulo e Paraná se tornaram uma só família naquela véspera de Ano Novo. Anoiteceu, nos juntamos para uma mística ecumênica puxada pela companheira acreana Camila, recitamos poemas, cantamos uns cocos e uns xotes, e eu abri uma garrafa de Pitú há mais de quarenta anos (portanto, mais velha que eu) guardada no Alto do Cruzeiro e ofertada pelo amigo Kall Melo. Entre as tantas atrações da programação da Virada no DF, escolhemos curtir o samba de Fundo de Quintal na Prainha dos Orixás, à beira do Lago Paranoá. Eu confesso que foi a melhor virada de ano da vida, porque não era um ano apenas que virava: saíamos de uma era de pesadelos para uma era de esperança e alegria. E todos, todas e todes ali reunidos compartiam da mesma sensação. Me empolguei demais na alegria exorbitei: dei um tibungão no Lago Paranoá com roupa e tudo. O problema é que, nesse tudo, esqueci de tirar o celular do bolso raso da calça e o perdi lá dentro. Como eu iria cumprir a promessa de transmitir o resto da jornada, documentada pelas mídias sociais desde o começo até então? Ah, deixei o aparelho para lá! Afinal, dali por diante, toda a posse já estaria mais do que transmitida e documentada pelos olhos do mundo. Fui descansar para o dia mais importante da viagem: assistir à posse do Lula com os meus próprios olhos.

Primeiro de janeiro de 2023. Às nove horas da manhã já estávamos de prontidão. Já havíamos tomado um café básico e nos dirigimos ao Estádio Mané Garrincha, de onde descemos com o povo em marcha até a Esplanada dos Ministérios. Saímos na linha de frente, braços dados com os companheiros e companheiras do MST e dos povos indígenas. Ali encontrei meu parente Tanawy Xukuru-Kariri, e os companheiros Parma e Heloíse. Abraços e selfies a cada encontro.

Eu estava enrolado com as bandeiras de Alagoas e LGBTQIAP+. Toda a água que eu levava acabou na primeira parte da caminhada. Achava que haveria a venda de água no trajeto. Que nada! Era um dia muito quente, seco, ensolarado. Comecei a suar bastante, ainda na lenta fila de revista para acesso à Praça dos Três Poderes. Apenas 30 mil pessoas – foi o que nos informaram – teriam acesso ao local privilegiado, e para garantir a nossa entrada, tínhamos que estar lá até as 10 da manhã.  À medida em que avançava, a multidão se afunilava à esquerda, onde eu estava, para passar pelo detector de metais, e à direita, na revista manual, onde me perdi de Jarbas e Cocada e encontrei Danúbio e a galera do Pau e Lata do Rio Grande do Norte. Conseguindo passar pela triagem, segui em frente, suando em bicas, me sentindo pouco a pouco debilitado. No alambrado do jardim do Ministério da Justiça dei um abraço em Flávio Dino.

Entrei na praça ao mesmo tempo que um grupo de indígenas cantando e dançando o toré “Pisa ligeiro”. Avistei dois pontos de distribuição de água. A fila era imensa, um caracol que não se movimentava. Eu estava cada vez mais desidratado e fraco. Quando o sol da liberdade, em raios fúlgidos, brilhou no céu da Pátria ao meio-dia, eu desmaiei. Procurei um lugar onde morrer sem ser queimado, me sentei num batente, e fui tombando inconsciente… Ouvi uma voz lá no fundo perguntando: “Você está bem, companheiro?”. Acenei com a mão, dizendo que não. O nome dela era Gabi, do Rio de Janeiro. Ela me deu uma bolacha salgada, que eu mal consegui mastigar. Nem saliva eu tinha mais para isso… Doravante, tenho lembranças esparsas… Bombeiros me conduzindo até o atendimento médico… Um médico entre a multidão de militantes eventualmente se oferecendo para fazer comigo um exercício rápido para oxigenar o cérebro… O enfermeiro perguntando se eu tinha medo de agulha… Na base do SAMU instalada no gramado do Supremo Tribunal Federal, eu despertei numa maca. A médica me perguntou se eu estava me sentindo melhor. Respondi que estava. Ela disse que eu me levantaria de vez com a segunda injeção de glicose. Enquanto o enfermeiro injetava a glicose no soro, perguntou ao Tobias, outro companheiro carioca que não parava de me abanar, que acompanhante era ele que não sabia passar informações sobre mim. Na hora eu intervi dizendo que ele nem me conhecia, que na verdade ele foi um anjo que me socorreu e estava ali comigo até aquele momento.

Eu fui um dos tantos que padeceu de sede à espera da posse. Foi cruel o que os responsáveis pela segurança fizeram, ao restringirem o acesso de vendedores de água ao local do evento. Coloco essa na conta dos bolsoterroristas que ameaçaram atentar contra a festa, fazendo com que o forte esquema de segurança fizesse, no fim das contas, o povo passar sede. Nunca passei por tanta desidratação: a garganta ressecou e tive hemorragia nasal. No meio de todo esse perrengue, não faltaram gestos de solidariedade dos companheiros e companheiras para com quem mais sofria naquela praça. Quase morri para conseguir tomar água! Mas consegui. E voltei para a festa.

Assim que saí da tenda, encontrei Wender, de Palmeira dos Índios, com Daniel Ginga e Ju Barreto, de Maceió. Pouco depois passou por nós os carros da delegação de Cuba, sob aplausos e gritos de “Viva a América Latina”. Depois passou a delegação da Bolívia, sob a mesma ovação. Lá pelas tantas, nem sei mais precisar a que horas da tarde, duas e meia, sei lá, Lula, Janja, Lu e Geraldo apareceram no Rolls-Royce presidencial. Começava a cerimônia que todos estávamos ali para testemunhar, e a emoção tomou conta do mundo. Acho que isso pode ser sintetizado na letra de “Estrelas d’água”, canção que marcou a passagem da primeira Caravana da Esperança, com Lula, em Água Branca, Alagoas, na primeira metade dos anos 1990:

“Ontem eu sonhei que estava acordado

E via o céu todinho estrelado

Que parecia tocar o chão

Com o sentimento apaixonado

Chegava gente de todo o lado

Que se abraçava e que se dava as mãos

Era o meu país ou um continente?

Estava ali, bem na minha frente

E começava a se transformar

Se era sonho ou se era vida real

Só sei que era o bem que vencia o mal

E a gente, feliz, podia acordar”

No momento mais esperando, ainda se especulava quem passaria a faixa a Lula. Eu apostava na Dilma. Foi a cena mais bonita da vida, porém, verem subir a rampa do Planalto com Lula, além de Geraldo e Lu, Janja carregando a cachorrinha Resistência, o cacique Raoni, o menino negro Francisco Filho, Ivan Baron, jovem pedagogo com paralisia cerebral, o metalúrgico Wesley Rocha, o professor Murilo de Jesus, a cozinheira Jucimara dos Santos, o artesão Flávio Pereira e a catadora de materiais recicláveis Aline Sousa, representando a diversidade do povo brasileiro. A faixa passou de mão em mão, até que Aline, uma mulher negra, a colocou no Presidente. Nunca cantei e talvez jamais cantarei com tanto vigor e significado o Hino Nacional Brasileiro como naquele dia. Olhei a bandeira, tremulando no céu de Brasília. Depois olhei o povo e vi um senhor, tão emocionado quanto eu, com lágrimas ardentes que ele teimava em não deixar cair dos olhos. Abri os braços e disse: “Chora, companheiro! Que o choro é livre, e o Brasil é também!”. Ele me abraçou e choramos copiosamente cantando – e nos reapropriando de – um dos símbolos da grande e diversa nação brasileira. Me senti como se eu estivesse ali celebrando uma conquista abraçado ao meu pai. Senti que ele também me abraçou como a um filho. Foi uma das melhores sensações da minha vida.

Com o fim do ritual no Parlatório, o Festival do Futuro começou na Esplanada dos Ministérios. Só assisti a Juliano Madeirada e Thiago Doidão cantarem a primeira música do grande show e voltei para o alojamento, onde reencontrei meus companheiros de viagem, de vida partidária e amigos de longa data. Estávamos exaustos, realizados, e, apesar de muito querermos ficar para ver tudo, já havíamos cumprido a nossa missão, e precisávamos pegar a estrada no dia seguinte, para mais três dias de jornada, desta vez indo por Barreiras, pegando um pedaço do Piauí, depois retomando a Chapada Diamantina pelo Morro do Chapéu, e passando pela margem pernambucana do Rio São Francisco, a partir de Petrolina, até chegarmos novamente a Alagoas.

Foi como viajar mais que de Lisboa a Paris e voltar. Foram mais de quatro mil quilômetros rodados por diferentes brasis: lindos, maltratados, modernos, arcaicos, cuidados, abandonados, um país que jamais conheceremos por completo, mas que vale a pena conhecer o máximo que se puder acerca dele. Um país com muita história para contar e com muita história a ser (re)construída. Voltamos para casa com o coração carregado de esperança, e com muito mais coragem para lutar e ajudar Lula e o povo brasileiro na (re)construção deste grande país!

* É Professor de filosofia, sociólogo e historiador