Política

O impeachment de Muniz revisitado 65 anos depois

13/09/2022
O impeachment de Muniz revisitado 65 anos depois

Tropas na Praça D. Pedro II antes do tiroteio que culminou no impeachment de Muniz Falcão. Foto de Márcio Moreira Alves para o Correio da Manhã

Funerária de Maceió, a frente de dezenas de outros veículos, num grande cortejo, conduzia o corpo do deputado estadual Humberto Mendes, 47 anos, assassinado na véspera, dentro da Assembléia Legislativa, durante tiroteio, quando os deputados se preparavam para votar o impeachment contra o governador Muniz Falcão, genro do parlamentar trucidado. Destino: Palmeira dos Índios, cidade natal da vítima, onde seria sepultado.

Era uma manha de sábado, 14 de setembro de 1957. Desde que corpo saiu de Maceió, logo as primeiras horas do dia, pessoas das cidades, fazendas, sítios e pequenas povoações que ficam às margens de BR-316, se apinhavam na beira da estrada para ver o cortejo fúnebre passar, tão amplamente divulgado, desde a tarde anterior, pela Radio Difusora de Alagoas, a (única emissora de Maceió, à época). Assim que cessou o tiroteio, no plenário da Casa Tavares Bastos, a estação de radio não parou de noticiar o fatídico acontecimento.

Tragédia anunciada: Deputados entram armados na Assembleia Legislativa

Com apenas um dos trinta e cinco deputados daquela época, ainda vivo, (Geraldo Sampaio, com mais de 80 anos) o tiroteio na Assembleia faz mais de meio século.

Depois daquele episódio sangrento, como alguns outros parlamentares que também se encontravam na Assembleia naquele dia, Geraldo Sampaio não parou na sua vida política e foi deputado federal, duas vezes candidato ao Governo do Estado, conselheiro do Tribunal de Contas e vice-governador de Alagoas. Atualmente é presidente do Grupo de Comunicação TV Alagoas.

Tudo começou com o processo pedindo a cassação do governador Muniz Falcão, iniciativa de Oséas Cardoso, seu ferrenho adversário, e que liderava um grupo de mais 21 deputados oposicionistas. A alegação era de irregularidades no Governo e a falta de providência à situação de violência política no Estado.

Naquele dia, Maceió, conhecida como a “cidade sorriso”, amanhecera triste, sombria, sem graça, apreensiva e demonstrando medo. Assustadas, as pessoas, nas ruas, tinham semblantes carregados pela expectativa e pela ansiedade. A tensão era geral! Era uma sexta-feira, treze. 13 de setembro de 1957.

O suspense, a boataria popular, o clima de pânico já começavam a dominar o Centro da cidade, logo às primeiras horas do dia. Existia razão para isso. O motivo era muito especial: estava para ser votado, na Assembleia, na tarde daquele conturbado dia, o impeachment contra o governador Sebastião Marinho Muniz Falcão. Desde as primeiras horas da madrugada, caminhões acostavam à porta de entrada do prédio da Assembleia Legislativa descarregando sacos de areia, às vistas de tropa federal, que, por determinação  do  ministro  da  Justiça,  Nereu  Ramos,  aquartelara-se  no  prédio  da Delegacia do Ministério da Fazenda (Tesouro Nacional), situada em frente à Assembleia, na Praça Dom Pedro II. As barricadas, com sacos de areia da praia (segundo a perícia, eram 72) empilhados atrás da mesa da Presidência, evidenciavam o desejo nítido dos parlamentares do bloco de oposição de ir ao confronto armado com os colegas governistas. Já às 9 horas da manha, a trincheira estava arquitetadamente pronta para o combate. O momento do conflito armado era aguardado. Dúvidas não existiam que ali seria travada, não uma batalha de leis e discussões legislativas, mas, sim, uma sangrenta luta armada.

Na véspera, para comandar pessoalmente e orientar os deputados de oposição em número de 22, contra apenas treze do Governo, chegara a  Maceió o Iíder nacional da UDN, o senador baiano Juracy Magalhães.

Na parte técnica, tudo estava detalhadamente preparado, nos seus mínimos detalhes, para a cassação do governador. Na parte material, homens, armas e munições de fartura, preparados para a menor reação dos deputados governistas.

A partir das 14 horas, deputados começaram a chegar à Assembleia, formando grupos. O maior, reunindo 22 parlamentares, estava na sala da Presidência. Eram os deputados de oposição. Por volta das 14 horas e 50 minutos, chegaram ao recinto do Plenário os deputados Humberto Mendes, Luiz Malta Gaia, Abrahão Fidelis de Moura e Claudenor Lima, e o filho do primeiro, Walter Mendes. Todos usando capas amarelas e ocupando pontos estratégicos, de onde podiam atingir, com tiros, os colegas que estavam na reunião do grupo dos 22.

Debaixo de um sol causticante e uma temperatura elevada, atingindo os trinta e poucos graus, com um calor sufocante, todos os deputados governistas chegaram vestidos de ternos e capas de Chantung por cima, para esconder as metralhadoras que portavam, enquanto no interior da Casa já estavam presentes todos os deputados de oposição, além do observador do Ministério da Justiça, Dr. Arnóbio Wanderley, e o general-senador Juracy Magalhães (todos protegidos pelos sacos que formavam a trincheira montada no período da manhã).

O deputado Humberto Mendes (PTN) sogro de Muniz e líder do Governo na Casa avisara, assim que chegara ao prédio da Assembleia, subindo as escadarias, na presença de colegas parlamentares e profissionais da imprensa, que “eles (referindo-se aos deputados oposicionistas) só votarão o impeachment se passarem por cima do meu cadáver”. Os sacos de areia empilhados em frente à mesa da Presidência, amontoados ordenadamente, formavam um muro numa altura de aproximadamente um metro e meio, para servir de proteção aos deputados, na batalha que estava para acontecer. A sessão estava marcada para a hora regimental: 15 horas. Antes mesmo de ser iniciada, ouvem-se os primeiros disparos.

O impedimento de Muniz Falcão foi o maior conflito político da história de Alagoas

Tiros, gritos, confusão, gemidos, sangue derramado pelo chão e salpicado nas paredes e um saldo de um deputado morto, o palmeirense Humberto Mendes.

O primeiro a tombar ferido, com uma metralhadora engatilhada nas mãos, foi o deputado Humberto Mendes, que se arrastou, atirando, indo cair morto, na sala do café, no mesmo pavimento (cantina), com a cabeça encostada na geladeira e a metralhadora ainda em punho.

Humberto Mendes se dirigia ao gabinete da Presidência, que ficava por trás da mesa dos trabalhos, com a metralhadora em punho, já engatilhada, quando recebeu o único tiro que o vitimou (um disparo de revólver, na nuca).  Daí para frente foi uma sucessão de tiros incontrolável, num verdadeiro fogo cruzado saindo do gabinete da Presidência contra o Plenário, e deste para a saIa da Presidência. O deputado Claudenor Lima entrincheirou-se por trás do busto de Tavares Bastos, Abrahão Moura e outros deputados se protegeram com as bancas do Plenário e Luiz Malta Gaia e Walter Mendes, filho de Humberto Mendes, na Sala das Comissões. O combate durou cerca de 40 minutos, sem interrupção. Mas, na verdade, mais de mil tiros foram deflagrados, contando com os disparos feitos da parte externa do prédio da ALE, tiros vindos de outros prédios das proximidades, inclusive da torre da Igreja Catedral e da Biblioteca Pública do Estado, onde havia homens (capangas) também entrincheirados.

Tiros, gritos, confusão, gemidos, sangue derramado pelo chão e salpicado nas paredes e um saldo de um deputado morto, cinco outros feridos, um jornalista, Márcio Moreira Alves, do “Correio da Manhã”, do Rio – e um funcionário da Casa, Jorge Pinto Dâmaso, também atingidos pela saraivada de balas. Dor, aflição, desespero e prantos…

Assim que cessou o tiroteio dentro do Plenário do Legislativo, começou uma segunda sessão de tiros, disparados da torre da Catedral, que fica do lado esquerdo do prédio de Tavares Bastos – onde continuava estendido no chão, com a cabeça encostada à geladeira da sala do café, a cadáver do deputado Humberto Mendes. Os outros parlamentares feridos – Jose Onias, Jose Afonso de Mello, Virgilio Barbosa, Carlos Gomes de Barros e Antonino Malta – o jornalista e o funcionário da Assembleia, à espera de socorro. Nesse momento,  o fogo era cruzado, com homens atirando da torre da igreja e do prédio da Biblioteca Pública. Comentou-se seguramente que haviam pistoleiros ou guarda-costas (seguranças) entrincheirados nos dois prédios, trazidos que foram, do interior do Estado, por deputados

Testemunhas da época atestam que os deputados que mais atiraram foram Virgilio Barbosa e Arnaldo Paiva, ambos da oposição, e não Oséas Cardoso, Claudenor Lima e Abrahão Moura, conforme foi amplamente divulgado.

Inclusive, uma testemunha ocular do episódio sangrento, o fotógrafo do Jornal de Alagoas, Pedro Farias (falecido) garantiu que o tiro certeiro, que matou Humberto Mendes, foi disparado do revólver do deputado Virgilio Barbosa, e não por Oséas Cardoso, que portava duas pistolas automáticas, segurando uma em cada mão. Reforçando a afirmativa do colega, o jornalista Rubens Jambo, ainda vivo, e que cobria, também para o JA, os acontecimentos naquela fatídica tarde, recorda, em entrevista ao também jornalista Denis Agra (saudosa memória) que o alerta para o tiro em Humberto Mendes foi dado ao deputado Virgilio Barbosa, pelo também deputado Jose Onias, que saiu ferido, com um tiro no pulmão, e, na confusão, terminou embaixo de um birô. Virgílio também não escapou das balas, e recebeu um tiro que lhe atingiu o fêmur. Esse tiro teria partido do revólver do deputado Abrahão Fidelis de Moura. Outro ferido foi José Onias, que recebera ferimento grave no tórax; José Afonso, atingido na cabeça. Carlos Gomes de Barros teve o pescoço atravessado por uma bala de metralhadora e ainda foi ferido na face esquerda; e Antonino Malta foi ferido num braço e na região lombar.

Walter Mendes, posicionado num ponto estratégico, quando viu o pai tombar ferido,  informado, em seguida, que ele estava morto, foi agarrado, na Sala das Comissões pelo deputado Siloé Tavares e pelo tenente Áureo de Azevedo França, chefe do policiamento interno da Casa, tendo havido forte discussão entre o deputado governista Ulisses Botelho e o deputado Siloé Tavares, oposicionista, no sentido de estabelecer um pacto da “não agressão”. O cunhado do govemador, portando uma metralhadora, cercava para impedir a saída ou reação dos 22 deputados que estavam reunidos na sala da Presidência. Siloé e Áureo colocaram os seus revólveres nas costas de Walter, ameaçando: “Se atirar, morre”. Se Walter atirasse, mataria certamente os 22 deputados.

O Exército apreendeu metralhadoras, “parabelum”, revólveres 45 e 38 e bastante munição. Agora, os primeiros movimentos, mesmo de baixa tensão, foram realizados pelos jornalistas, que solicitavam a todo instante socorro médico para os deputados, procuravam auxiliar os feridos, e, gritando nos corredores sua condição de profissionais de imprensa, possibilitaram a geração de um sentimento menos beligerante.

Antes do trágico acontecimento, houve manifestação popular, que percorreu as ruas do Centro da cidade, e ficou defronte ao prédio da Assembléia, pedindo, aos brados e discursos acalorados, que os deputados não votassem o “impeachment”. Deflagrados os primeiros tiros, houve correria na praça. Populares deitavam-se nas calçadas, se protegiam por trás de árvores, procuravam se homiziar no interior do “Parque Hotel”, que ficava a poucos metros do prédio da ALE, do lado esquerdo do “paredão”, onde se sentiam mais seguros.

O “impeachment” contra o governador Muniz Falcão foi antecedido de fatos sangrentos e administrativos que não se pode ofuscar, historiando o sinistro incidente daquele distante 13 de setembro. O tiroteio na Assembleia foi precedido de acontecimentos outros que forçam inevitavelmente mencioná-los, senão a historia sobre o caso perderia o seu real sentido e ficaria soIta, evidentemente.

Os assassinatos do vereador Benicio Alves de Oliveira, da UDN (oposição) em Arapiraca, trucidado a balas, numa emboscada,  e do deputado José Marques  da Silva, também da UDN na mesma cidade, tendo também o deputado Claudenor de Albuquerque Lima, do grupo governista, como acusado de mandante, (capítulos anteriores) acelerou a crise política no Estado, iniciada logo após a posse do governador, em 31 de janeiro de 1956 “quando foi instituída a chamada Taxa Pro-economia, Educação  e Saúde, batizada pelo povo de Taxa do Açúcar, que incidia sobre os produtos básicos da produção estadual, a saber: açúcar, fumo arroz e coco, visando fortalecer as fontes de arrecadação do Estado, que iria cobrar impostos de quem podia pagar. Não imaginava o governador que estava, com essa medida, assanhando uma casa de maribondos.

Logo no início do Governo de Muniz, o seu Vice, advogado Sizenando Nabuco, que obteve segundo depoimento do próprio, ao autor, 50.856 votos, contra pouco menos de 50 mil do governador, já que, de acordo com a legislação eleitoral da época, vice também era votado, rompeu-se com o governador e passou a criticá-lo, taxando-o de desleal e incorreto para com ele. Lembrava que, na campanha, foi feito um livro de ouro para eleger Muniz, que estava sem condições financeiras de arcar com a campanha. Na divisão dos cargos de primeiro e segundo escalões, em numero de 40, Muniz esqueceu o companheiro de chapa. Fez 39 nomeações. Quando faltava, apenas, uma vaga a preencher, consultara Nabuco, que dispensou e rompeu de imediato.

Eleito com o apoio de apenas 5, dos 35 deputados da época, Muniz tomou posse apoiado por 23 deputados, ficando a oposição somente com 12. Mas, o quadro foi revertido dentro de pouco tempo, ficando o governador com 13 parlamentares na sua bancada, contra 22 de oposição.

Os 13 deputados da bancada governista eram: Jorge Assunção, Jose Bezerra, Antonio Moreira, Abrahão Moura, Claudenor Lima, Luiz Gaia, Ramiro Pereira, Humberto Mendes, Ulisses Botelho, Luiz Coutinho, Augusto Machado, Aderval Tenório e Luiz Resende. Já na bancada oposicionista figuravam: Antonio de Barros, Carlos Gomes de Barros, Teotônio Vilela, Julio França, Mário Guimarães, Geraldo Sampaio, Siloé Tavares, Oséas Cardoso, Otacílio Cavalcante, Virgílio Barbosa, Jose Onias, Lamenha Filho, (Presidente da Casa), Machado Lobo, Edson Lins, Hermann Almeida, Arnaldo Paiva, João Toledo, Manoel Borges, Jose Afonso de Mello, Antenor Claudino, Antonino Malta e Antenor Serpa.

Quatro dias após o tiroteio, com proteção do Exército e num rigoroso esquema de segurança, é votado o “impeachment”, no Instituto de Educação, na Rua Barão de Alagoas, local que foi escolhido para as sessões da Assembléia num Plenário improvisado. Um momento de emoção maior foi quando chegou, numa maca, o deputado Carlos Gomes, e votou “sim”, sem falar, apenas com o aceno da mão. Na segunda votação, ele já conseguiu balbuciar a palavra “sim”. Estava, assim, após duas votações, afastado do governo de Alagoas o ex-deputado federal pelo PDP Muniz Falcão, que, absolvido pela Justiça, voltou ao Governo quatro meses depois, no dia 25 de janeiro de 1958,completando o mandato em 31 de Janeiro de 1961.

Esse texto foi escrito pelo saudoso jornalista José Jurandir (que nos deixou há cerca de 6 anos) especialmente para a Tribuna do Sertão