Variedades
Fernando Salem lança “Trilhas do Amor”

Criar um álbum musical não é apenas reunir um punhado de canções. É preciso escolhê-las e alinhavá-las com algum sentido – de forma a que construam pontes, provoquem ideias, formem narrativas. Isso ficou claro desde o lançamento de Sgt. Peppers, dos Beatles, considerado pelos críticos o marco de “álbum conceitual” – embora os brasileiros já costurassem canções em torno de ideias pelo menos desde a Bossa Nova. De lá para cá, com a fragmentação do mercado musical em diversas mídias, um pouco dessa busca de sentido se perdeu. O que valoriza ainda mais os artistas que lançam ao ar músicas como pontos brilhantes, propondo ao ouvinte o desafio de ligá-los e identificar os possíveis desenhos.
Fernando Salem é um desses artistas. Morou em países diferentes. É versado em gêneros diferentes, do choro ao rock. Mistura linguagens diferentes, do instrumental ao teatral que desenvolveu nos tempos da Banda Vexame. Salem costura narrativas musicais com a habilidade de um roteirista, profissão que exerce paralelamente à música – eu o conheci quando trabalhava na Bravo!, e Salem transformava um evento anual da revista em uma reflexão ao mesmo tempo densa e divertida sobre a cultura brasileira.
O título Trilhas do Amor tem a ver com tudo isso. Salem propõe várias viagens por seu álbum. A trilha mais evidente é a que está indicada no próprio nome. O álbum é uma belíssima coleção de canções de amor. A fossa é em geral deixada de lado, em escolhas que privilegiam a leveza – talvez uma das contribuições brasileiras às canções de amor, afinal somos o país da “tristeza que balança”. Músicas como Mon amour, Meu bem, Ma femme (Cleide), sucesso na voz de Reginaldo Rossi, Curare (Bororó) e Olhar de Mangá (Erasmo Carlos) falam de amores que, de uma forma ou de outra, valeram a pena. A exceção talvez seja Demais, o belíssimo blues de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira. Salem, no entanto, bebe a fossa etílica dos dois compositores no cálice da ironia.
Outra trilha é a que liga os diferentes registros, que vai do brega de Reginaldo Rossi e Fernando Mendes à bossa nova de Alf e Jobim, passando pelo rock de Erasmo Carlos e pela MPB tudo-ao-mesmo-tempo-agora de Caetano Veloso. Independentemente do registro, são todas preciosidades brasileiras. Como nada é absoluto, há aqui também uma exceção: 11 y 6, a belíssima música do argentino Fito Paez que narra o amor de duas crianças nas ruas de Buenos Aires. Salem a interpreta com pegada onírica e impecável sotaque portenho.
Um álbum que se compõe principalmente de regravações não faz sentido se o artista não tem nada de novo a dizer sobre as músicas. Salem recria seus achados sempre apresentando-os sob novas luzes. O romantismo de Cadeira de Rodas (Fernando Mendes, Zenith e José Wilson), música que hoje seria considerada politicamente correta, se transforma em samba lírico. O humor de Olhar de Mangá, que hoje seria considerada politicamente incorreta, se enriquece com a lista de mulheres superpoderosas que Salem acrescenta à letra original. E a delicada voltagem de Sou Seu Sabiá (Caetano Veloso) traz uma nova emoção à melodia belíssima. Vale muito a pena percorrer o álbum pela trilha das descobertas do intérprete.
Que é também, como sabe quem o acompanha, um ótimo compositor. B.Ó. (Boletim de Ocorrência) e Pro Nelson, Pro Cezinho, Pro João são as duas músicas com a assinatura de Salem. As duas trazem a marca da leveza que perpassa o álbum. B.Ó. é um pop bem-humorado destinado a explodir nos tocadores (antigamente se falava “tocar no rádio”). Pro Nelson, Pro Cezinho, Pro João é um delicioso samba-brincadeira cheio de mensagens cifradas. A trilha do Salem compositor é curta mas recompensadora.
Existe uma trilha certa para percorrer o álbum? Toda obra de arte só existe em função de quem a vê, lê ou ouve. As trilhas de Trilhas do Amor, como as trilhas do amor na vida real, são infinitas – e cabe a cada um descobrir, e percorrer, uma trilha nova a cada escuta.
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