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Afeto, carne, amor

20/01/2022
Afeto, carne, amor

– Consegui guardar um tempo, voltei aos livros… Talvez até escreva, assim, por escrever, dizer sobre as coisas, imaginar um pouco…

– Tempo… administrar o tempo, talvez a única administração que importe. A vida é tempo, não é?

– Logo terei ainda mais tempo… Fui ver o Jung… Um método perigoso.

– Rsrs… é, há que ter cuidado com o seu uso, emoções afloram, há quem não saiba o que fazer com o que emerge.

– Sabes? Fico com Freud, mas, talvez eu tenha medo de me aprofundar. Sei lá o que encontro em mim.

– Ah!, medo de te encontrar contigo, então?

– Ah!, pode ser terrível, né? Vai que me descubro e não me gosto.

– Terrível? E tens que te gostar em tudo? Ou haveria algo de fato terrível dentro de ti, te assombrando a consciência, rsrs? Não dou importância às minhas assombrações. Afinal, o que me poderia infundir terror senão aquilo a que eu mesmo atribua condição terrificante?

– É, sei, valores… nada é terrível em si. Bem… só o tempo, que não volta mais. Isso me assusta por demais.

– O tempo, não se pode deixá-lo passar, há que se gastá-lo, vivê-lo todo. Detesto o tempo; reverencio o tempo. Proclamo que o tempo é vida, mas me parto: odeio o tempo; amo a vida.

– Então… O que se faz dele? Ou não se faz?

– Impossível prolongá-lo, mas, ainda assim, prolongá-lo, como seja possível. E nada mais se pode.

– Pode-se inventar a vida eterna. Invejo os crentes. Amém.

– É tragicômico, a gente acaba. Difícil admitir.

– No sentido de envelhecer?

– Mais. No de fim, mesmo. Fim. A flor brota, cresce, acaba, some… E nós, igual: acabamos. Isso é mesmo assombrador. Daí as fantasias de não morrer.

– A gente não quer acabar. A gente quer ir para o céu.

– Imaginação de recusa: a mais extraordinária recusa da morte. É primitiva, mas eficaz… sobrevive. E é quase universal. Cada tribo vai ao seu modo, mas vai para algum céu.

– Eu nem quero céu… o inferno me parece mais animado… só não queria acabar… O ruim é acabar… e não vai dar tempo de tudo.

– Eis o fantasma: o tempo, sempre o tempo. Daí o imperativo das opções. Há que optar; não há, mesmo, tempo para todas as coisas.

– Catar o interessante… ter sabedoria para vivê-lo, ter gosto para fruir a vida.

– Mas há sempre a angústia das escolhas, as dores pelo abandonar o não escolhido. É terrível a sensação do abandono, a eterna nostalgia culpada do abandonado. Uma saudade do como seria, se tivesse sido, ou não sido. Vá lá saber! Mas fica a interminável dúvida.

– Feliz com suas escolhas? Faria algo diferente?

– Não me arrependo, nem cabe. Gosto de mim. Se não tivesse sido tudo como foi, eu não seria quem sou. A questão que me ponho é outra: minhas escolhas… elas não se realizaram de todo, o mundo interferiu, o outro interveio.

– O outro se recusa… Tem suas próprias escolhas. O mundo não está, mesmo, para nos servir… Não podemos nos esquecer disso. É muita presunção, querer submeter o mundo aos nossos interesses.

– É… mundo ingrato, não cumpre meus caprichos, rsrs.

– Rsrs, mas nisso está toda a graça: no negociar com o mundo, nos escambos da existência.

– Conformar-se, pois?

– Pode ser, não como resignação, mas como conciliação. Vivenciando as coisas, ajustando, regateando… Não é conformismo.

– Sei… adaptar-se à realidade.

– Isso: harmonizar-se, fazer a transação necessária, sem concessões de si, mas sem passar por cima dos fatos do mundo, até porque o mundo não permitiria.

– Bem… aqui… cuidado nessa negociação. Nós nos enganamos por demais. Para justificar o que queremos, não nos furtamos em nos acanalhar.

– Ceder além da conta? Creio que muitas vezes o mundo nem nos pede… cedemos para nossos interesses menores. Nos convencemos de que era imperioso, mas fazemos de graça, ainda que constrangidamente, e vamos levando, nos explicando, nos repetindo.

– É… há que solicitar consciência, estar com atenção.

– Concessão é a palavra. Cuidado com as concessões. São necessárias, ou a vida seria uma guerra, mas há limites.

– Entendo… Tenho que estar no cuidado de mim, no que cedo… Algo ético de mim para comigo mesmo.

– Alguma ética: um combinado subjetivo que me orienta, que tem que se fazer valer. A gente percebe… a consciência até que avisa, mas, na hora… um tanto indignos, fraquejamos.

– É que… Talvez… Só se vê depois, né?– Sim… e não, não é tão simples. Nos pomos com olhos de não querer ver.

– Mas, haveria como saber? Estaríamos, realmente, sempre lúcidos das circunstâncias?

– Por menos, a gente intui… A gente sabe, mas, tantas vezes, a gente cede, rsrs. E nem me perguntes: cede a quê? São manobras vis… Cedemos a interesses que não confessamos nem a nós mesmos.

– Rsrs, dá um desconforto, né? Por dentro… dá uma agonia. Eu já senti isso, sim. Somos caras-de-pau…

– Ah! Mas não estamos sós. Somos a humanidade! Somos todos bichos que tropeçamos na ética e caímos… ou nos jogamos… em tentação.

– É… bichos… bichos carentes, carentes de afeto, rsrs.

– Rsrs, bichos carentes de carne.

– Carentes de afeto, carentes de carne: carência… Podemos chamar de amor?