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Devaneios de uma paixão
“Aquele que lançou uma pedra não pode mais recuperá-la; e, no entanto, dele dependia lançá-la ou deixá-la cair”. Aristóteles (Ética a Nicômaco) veio-lhe assim, sem mais nem porquê. Recados do inconsciente? Talvez fossem dessas mensagens que nós, sem querer, emitimos para nós mesmos. Desconfiou: o inconsciente tem suas próprias razões, que raramente estão de bem com as razões conscientes. Pelo sim, pelo não, quem sabe!?
Bem, por isso mesmo, por não saber, vai ver é o caso. Não, não haveria de ser. Psicanalítico, mas não se aplicava. A situação em que se encontrava jamais teve iniciativa sua. Deu-se nela. Antes de perceber a circunstância de suas emoções, surpreendeu-se enredado por emoções e por circunstâncias. Admitiria a Aristóteles que a pedra partira de suas mãos, mas negaria que a tivesse lançado com intenção, porque, acreditava, não o fizera.
Deixando-se em livre pensamento – assim conversava fundo consigo –, encontrou-se em tempos muito antigos. O Código de Hamurábi, quatro mil anos, interditava o testemunho dos apaixonados de amor. Leis e paixão, coisa de se pensar. Leis são restrições, mas garantem liberdades. Sem lei, vale a vontade do mais forte. A lei deve submeter a todos, inclusive o mais forte. Enquadrando a todos, a lei nos nivela um pouco mais.
Concordava que lei era, ou deveria ser, isso mesmo: submissão suficiente a uma “vontade geral”. O problema sempre seria a legitimidade: quem tem autoridade para identificar essa “vontade comum”? Mas isso é outra história. Acode Espinosa (Ética): “O homem que é conduzido pela razão é mais livre na cidade onde vive segundo a lei comum do que na solidão, onde só obedece a si mesmo”. E sobre paixão, que tem paixão a ver com lei?
Hamurábi concluiu que homens apaixonados eram inconfiáveis, tanto que os proibiu de depor em juízo. Suspeitos, logo, menos livres, ou suspeitos porque menos livres. Mas, a paixão diminui a liberdade? Espinosa (Carta LVIII): “Essa liberdade humana que todos se vangloriam de possuir consiste apenas em que os homens têm consciência de seus apetites e ignoram as causas que os determinam”. O que me faz desejar o que desejo?
Entendeu-se perdido nos caprichos da imaginação. Isso não lhe dizia tudo, mas lhe dizia que estava desencontrado. Bastava por hora. Ou não. Fustigava-o uma palavra forte: apetite. No mundo e nos sonhos, tinha fome e sede de uma mulher. Queria comer e beber do seu corpo. Era isso que não se confidenciava, mas tudo nele era paixão por uma mulher, que, por ele, só se perdera uma única vez, e então se fora dele, para sempre nele ficar.
Tinha apetite e se sentia devorado. Holocausto à sua cobiça: desejoso, desejava ser mais tragado por seu desejo. Ansiava saciar sua sofreguidão por aquela mulher. Sua vontade era do mundo, era concupiscência da carne, a que faz o pecador (1 João 2:17, Bíblia). Pensou: “Como os homens se enganam sobre o pecado; quão belo ele pode ser”. Desinteressava-lhe elevar-se aos céus, a não ser que fosse para pecar. Pecar com aquela mulher.
Nos tempos religiosos, os homens se inocentavam de lubricidade. O homem perdido acusava a mulher: Súcubo, o demônio feminino, vinha pela noite para copular. Essa diaba punha-se por baixo do homem e o possuía; atormentava-o e o fazia gozar prazeres carnais. Pois ele espera essa demônia redentora: a mulher que ele deseja e que, tendo-a, o fará dormir. Mas dormir culpado, com o deleite que só os culpados conhecem.
Montaigne (Os Ensaios): “Há certas inclinações de afeição que às vezes nascem em nós sem a deliberação da razão”. “O apetite que nos arrasta para a conjunção com as mulheres procura apenas expulsar o sofrimento que o desejo ardente e impetuoso nos causa, e pede apenas para saciá-lo e acomodar-se no sossego e na ausência dessa febre”. Clamou por razão. “Assunto de consciência; servir-se da própria razão (Kant, O que é o Iluminismo?).
Nada. Não vai funcionar. Hegel pode ter concluído que a razão governa a História (Filosofia da História), mas isso era mais credo em suas lucubrações do que fato. E serve para política, não para um apaixonado em desespero de causa. As garantias dessa faculdade, elas não lhe podem acudir: “A razão é, e só pode ser, escrava das paixões; só pode pretender ao papel de servi-las e obedecer a elas” (Hume, Tratado da Natureza Humana).
Felizmente, seu caso não compreendia solução. Podia, assim, desfrutar das culpas concupiscentes da sua paixão. Mas, e ela? Que fazer para que a mulher não seja tão só alucinação? “O homem bem-sucedido é aquele que consegue transmutar as fantasias do desejo em realidades” (Freud, Cinco Lições sobre a Psicanálise). Escrever, publicar, esperar que ela leia. Aí, se ela ler, se ela gostar, se ela entender que ela é ela… Quem sabe?
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