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Carta ao Ronald
Meu querido amigo, meu irmão.
Hoje é sábado, nove horas da noite, sentei-me em minha vistosa varanda, sozinho, abri a garrafa de John Walker Blue, levantei o copo em direção à lua deslumbrante iluminando o mar e a praia da Jatiúca, antes do primeiro gole fiz um brinda a você, meu querido Ronald. Nesse momento minha mão trêmula de 81 anos tenta escrever-lhe uma carta em forma de garranchos. Amanhã passo ao computador, o brinquedo preferido na senilidade. Hoje cedo uma força estranha exortou-me à sua lembrança, são muitas e consigo transformar as saudades em boas recordações. Pela manhã fui resolver um problema em Bebedouro. Deu-me uma dor no coração ao ver o bairro que você nasceu e tanto amou. Está arrasado. Parece que um furacão passou destruindo os telhados ou que alguma bomba desviada da Síria explodiu o belo e histórico bairro. Bebedouro em ruínas é de fazer chorar. Em outras eras foi o bairro mais chique da cidade; imponente, com casarões, colégios e prédios de elegante arquitetura. Foi-se uma parte da história viva de nossa cidade. Você, Ronald, foi o bebedourense mais apaixonado pelo bairro, junto ao Major Bonifácio. Ano passado em uma palestra na Festa Literária de Fernão Velho você emocionado, orgulhoso, olhos mareados contou sua infância livre e solta no amado bairro belo e nobre. No entanto uma bomba subterrânea em forma de mineração irresponsável penetrou no subsolo da região. Ganância da fábrica química Braskem em busca da Salgema fez ceder o solo, acabando com seu bairro de Bebedouro, tão rico de cultura e história que tanto envaidecia seu sentimento de pertencimento. É de fazer chorar, meu amigo, Ronald.
Antes do almoço parti para o Acarajé do Alagoinha, esperando amigos contumazes sentei-me à mesa. Ao tomar a primeira cerveja, olhando ao redor da praça, veio-me a sua imagem. Que papos maravilhosos e inteligentes junto com Carlinhos Méro, desde literatura, política, sacanagem ou nossa Academia Alagoana de Letras e assistir ao desfile de bonitas mulheres passando, que não somos de ferro. O Caiubi me trouxe acarajé, outra cervejinha e recordou o Dr. Ronald que ele queria tanto bem. Você nem imagina quantas pessoas se encontram comigo, sabendo de nossa amizade, comentam pesarosos sua ida. Dr, Ronald querido da comunidade de Maceió, fazia parte da estrutura viva da cidade. Sem falar nos seus alunos, seus pacientes que lhe idolatravam. Você será, por muitos anos, reconhecido e amado pelo tratamento humano aos enfermos de todas as classes sociais.
Sinto falta não só da presença do amigo predileto, sinto falta de seus escritos inteligentes, sua verve sutil, crônicas graciosa, elegantemente debochadas, às vezes ferinas, satíricas. Ah! Como eu me deliciava com suas crônicas. Com mais uma cerveja e acarajé veio-me detalhes de sua eleição na Academia Alagoana de Letras, campanha divertida. Eu você e a Nadja em seu apartamento telefonando para os acadêmicos pedindo votos. Foi uma linda e merecida vitória, você venceu disparado. Logo se tornou uma liderança dentro de nossa Academia. Sua cultura, sua inteligência, sua medicina estão fazendo falta às Alagoas. Será difícil um substituto à sua altura.
Aqui da varanda, em noite clara vejo alguns coqueiros balançando, como balança minha cabeça ao encarar mais outra dose desse uísque fantástico que não dá ressaca. Na verdade ainda não digeri sua partida, é difícil Ronald. Meu consolo foi ter privado de sua amizade, de sua inteligência, sua força em horas cruéis junto com Nadja. Resta pouco tempo para nos encontramos. Eu seguirei em forma de cinzas jogadas ao mar da Avenida quando chegar a hora. A inexorabilidade do tempo é a única certeza. Vânia está aqui perto, manda-lhe um abraço. Pedi, ela entrou no Youtube, o som alastrou-se com a divina música, La Vie em Rose. Parece que estou lhe vendo com um microfone cantando sua música predileta: “Quand il me prend dans ses bras.. Qu’il me parle tout bas.. Je vois la vie en rose…Il me dit des mots d’amour… Des mots de tous les jours..Et ça me fait quelque chose….”
Outro uísque, as lembranças me emocionam, faz bem deixar as lágrimas rolarem, ouvindo músicas que enlevam a alma. Minhas letras já não são mais garranchos, será tarefa difícil traduzi-las no computador. Vou ficando por aqui, me despeço recitando um poema de John Donne, meu poeta inglês preferido, que diz mais ou menos assim: “Nenhum homem é uma ilha, cada homem é uma partícula do continente, uma parte da Terra. Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída. A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.
Os sinos dobram por mim, por Nadja, filho, nora, neto, Claiton, Socorrinho, dobram por seus amigos. Até mais ver meu querido amigo. Não se esqueça! Reconheça-me. Eu chegarei em cinzas molhadas no mar da Avenida da Paz. Ainda entorno outra dose antes de dormir. Beijo.
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