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A inversão da questão religiosa
Religião – estou falando dos monoteísmos abraâmicos – conceitualmente, então necessariamente, é pensamento dogmático e único. Seus dogmas são “verdade”. Encontrada (ou “revelada”) a “verdade”, tudo o mais que se diga ou mesmo pense será “mentira”.
Sempre que detiveram poder para tanto, religiões impuseram suas opiniões. Qualquer livro elementar de História registra as violências que a “persuasão” religiosa instaurou no Ocidente. Não há religião democrática. Religiosos toleram a democracia liberal porque os estados modernos têm poder para sustentá-la.
Merece registro que Pedro II, um monarca com apreço pela ciência, num conflito nomeado Questão Religiosa, impôs-se à igreja católica, habitante das esferas do poder político brasileiro, ocupante de cargos na administração e reguladora dos costumes. Isso decorria do sistema de padroado, negociado com o Vaticano, pelo qual o imperador nomeava e sustentava os membros do clero.
Em 1864, porém, durante o Segundo Reinado, o papa Pio IX enviou ao Brasil uma bula, determinando que católicos pertencentes à maçonaria fossem imediatamente excomungados. Bem, Pedro II, sendo ele mesmo maçom, publicou um decreto recusando valor à ordem da Santa Sé.
A maioria dos bispos conformou-se, mas os de Olinda e Belém ficaram com o papa. O imperador condenou os insubordinados à reclusão e prestação de trabalhos forçados. Posteriormente suas determinações foram revogadas, mas, se impôs-se como governante, jamais recuperou o apoio de um segmento politicamente poderoso como a hierarquia católica.
No Brasil, desde a estruturação do Estado, a religião católica tem sido o pano de fundo da nossa mentalidade, logo, da pauta eleitoral. A Questão Religiosa não impediu que o poder bem espraiado de padres seguisse decidindo, com discursos de púlpito, eleições por todos os rincões nacionais.
Mas, se suas incursões na vida jurídico-política nunca se retraíram, pode-se dizer que, ainda que haja uniformidade na ideologia “revelada” de fundo, nem todos os hierarcas católicos se afiliam como militantes políticos ao mesmo discurso mundano. Os séquitos da Teologia da Libertação, por exemplo, sobre as Comunidades Eclesiais de Base fundaram o Partido dos Trabalhadores (90% dos diretórios municipais).
De um ou de outro lado do espectro ideológico, é o que importa dizer, religião é poder político, e se seus dogmas são tocados, religiosos reagem em conjunto. Após a Ditadura de 1964, quando a Nova República caiu no colo de José Sarney em decorrência da morte de Tancredo Neves, dadas suas concepções católicas de mundo, ainda experimentamos o modo religioso de debater seus preceitos: censura.
Censura que contou com o silencio obsequioso e “colaboracionista” de todas as correntes cristãs: sejam as de direita, como é próprio e coerente que aconteça, sejam as sedizentes de esquerda, que não expressaram um único verbo contra o ato de censura.
“Em nome de Deus, Fevereiro de 1986 – Por pressões da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), o presidente José Sarney proíbe a exibição no país de ‘Je Vous Salue Marie’. O filme, dirigido por Jean-Luc Godard, questiona dogmas católicos, como a virgindade de Maria” (FSP, 01ago96).
Pela moral e bons costumes: “Novembro de 88 – O prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, interdita oito cinemas que exibiam ‘A Última Tentação de Cristo’, filme do diretor Martin Scorsese. Alega que as salas têm ‘falhas de segurança’. No mesmo dia, a Arquidiocese do Rio divulga nota chamando o longa-metragem de ‘blasfemo e pornográfico’” (FSP, 01ago96).
Bem, a Teologia da Libertação saiu de moda e o negócio da crença recrudesceu pela banda da direita mais retrógada, um pentecostalismo, digamos, popular. Foi criado um conglomerado de aparelhos ideológicos capazes de produzir candidatos, orientar votos e eleger políticos.
A esse “caldo” de crenças se somaram correntes reacionárias das mais diversas ordens: saudosistas da Ditadura, ressentidos de variados segmentos sociais, moralistas recatados, punitivistas de “bandidos” etc. Por fim, advieram os desencantados com o petismo, descontentes com a ladroeira escancarada.
Na última eleição presidencial essas frações de opinião pública amalgamaram-se em torno de um candidato evangélico fundamentalista. Agora nós temos Bolsonaro no governo do País, e os religiosos se têm dado – seguros de que é direito seu – licença de se assanharem na ocupação de nossos espaços públicos.
Colhi, em único jornal (Folha de São Paulo), notícias da primeira semana de um mesmo mês (julho) do ano corrente sobre esse horroroso conúbio entre religião e poder governamental que está estabelecido no País. Como se verá, estamos avassalados por cristianismos diversos.
“Angola teme que Crivella transforme embaixada na África do Sul em posto avançado da Universal – Bolsonaro indicou ex-prefeito do Rio para representação diplomática em Pretória para agradar igreja. A indicação gerou queixas de autoridades do governo de Angola, que temem que o religioso transforme a missão diplomática num posto avançado da Igreja Universal do Reino de Deus no continente africano” (Ricardo Della Coletta, FSP, 02jul21, editado).
“Bolsonaro quer partido cristão e de direita, mas ala do Patriota resiste – Aliados do presidente Jair Bolsonaro, que está em negociação para se filiar ao Patriota, querem incluir no DNA da sigla valores cristãos e uma posição contrária à legalização do aborto, em um movimento para tentar reconquistar votos de evangélicos para a eleição de 2022” (Thiago Resende, FSP, 04jul21, editado).
“Gestão Ribeiro no MEC é marcada por falhas e pauta ideológica – Escolhido para acalmar os ânimos no Ministério da Educação, o pastor Milton Ribeiro completa um ano no cargo com uma gestão marcada por polêmicas, ineficiência, reforço em questões ideológicas e suspeita de favorecimento a grupo religioso” (Paulo Saldanha, FSP, 05jul21, editado).
“Menções a Deus, Bíblia e Jesus Cristo se acumulam na CPI – A religiosidade cristã apareceu em todas as sessões da CPI até aqui, a começar pelo primeiro encontro dos senadores que investigam se o governo Jair Bolsonaro cometeu crimes ao lidar com a pandemia de Covid19 no país. A tônica religiosa dá as caras nas falas da situação e da oposição”. (Anna Virginia Balloussier, FSP, 07jul21, editado).
Temos opção? Pesquisas atuais indicam a possibilidade petista. Nessa grei, contudo, o tom messiânico não é menor do que na direita: “1º Encontro de Evangélicos e Evangélicas do PT acontece sexta e sábado, com o tema ‘O fenômeno religioso e as consequências políticas na sociedade brasileira: análises, estratégias e ações’, reunindo religiosos de diferentes cidades do país. A abertura do evento foi marcada por muita animação, com cantoria e salmos declarados” (Site Lula, Fundação Perseu Abramo, 05abr19, editado).
Nesse evento, a presidenta da sigla, Gleisi Hoffman, fez as críticas “de costume” ao atual governo. Mas a deputada Benedita da Silva, fervorosa presbiteriana (assim como Milton Ribeiro, ministro da Educação de Bolsonaro), o arrematou com incomum proselitismo cristão: “Todo revolucionário deve ler a bíblia”. Para que o partido “sempre tenha uma espiritualidade avançada”.
É… Algum presbítero nos conduzirá. Haverá a inversão da Questão Religiosa. Padroado, pastorado, pregação. Ninguém precisa se preocupar com um mundo esclarecido, nossos políticos estão providenciando nossa “salvação”. Aleluia irmão. Amém.
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