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Piu-piu

25/04/2021
Piu-piu

Todo povo tem a história oficial de seus heróis escritas em volumosos compêndios. História repleta de gente importante: governadores, generais, deputados, senadores, ricos comerciantes. Como modesto observador da vida, prefiro contar sobre figuras mais modestas que me marcaram profundamente e viveram nessa cidade de Maceió. Minha memória é recheada de gente com quem convivi ou simplesmente conheci e tornaram-se inesquecíveis. Uma delas foi Piu-piu, um muriciense elegante, constantemente trajando paletó arrumado, de fazer inveja a lordes ingleses.

    Eu tinha cerca de dez anos, meu pai levava a filharada para o centro da cidade no fim da tarde para tomar uma cerveja com amigos no Café Colombo.  E nós, meninos, nos fartávamos de sanduíche de fiambre com queijo do reino e um saboroso caldo de cana moído na hora. Nas tardes, a Rua do Comércio se apinhava de gente, outros se encontravam nos bares: intelectuais, boêmios, políticos e desocupados da cidade. Uma dessas figuras marcantes que não faltava uma tarde na Rua do Comércio era um senhor elegante, alto, forte e falastrão, conhecido como Piu-piu. Impecavelmente vestido, todos os dias ele comparecia de terno ou jaqueta com botões dourados, calças bem passadas, uma bota preta de cano longo completava a vestimenta. O charuto dava um ar de esnobe ao comerciante. Piu-piu apesar de trajes tão distintos vivia de um pequeno comércio: venda e compra de antiguidades, objeto de artes, ouro, prata e joias. Dava para sustentar sua pequena família e seu inigualável guarda-roupa. Ele era impecável na arrumação pessoal. Cabelos bem penteados com brilhantina Glostora, barba bem feita. O bigode denso de cabelos crespos e ruivos, grosso, bem frisado, as pontas de curvas perfeitas faziam meia lua subindo como se apontasse para o céu, digno de um príncipe hindu ou de um kaiser alemão. Diziam que o bigode do Piu-piu era frisado por ferro de engomar.

      Nosso herói morava entre o Prado e Ponta Grossa, porém, às tardes ele vivia no centro da cidade.  Além das túnicas e ternos ele aparecia de chapéu Panamá, as mãos reluzentes de anéis de todos os tipos, seus dedos eram dourados e brilhantes. Na Rua do Comércio, impreterivelmente às 14 horas desfilava sua elegância e pretensa arrogância, pois se dizia brigador, disposto a qualquer luta, andava armado com punhal e um revólver.

       Seu bigode era atração, ele tinha orgulho, uma verdadeira adoração na manutenção daqueles dois tufos intocáveis. Muito lhe contrariou quando jovens estudantes lhe colocaram o apelido de Bigode de Arame. Muitas vezes correu atrás de estudantes que gritavam “Bigode de Arame”, empunhando o punhal que levava constantemente na cintura, por baixo do paletó.

       Um fato marcante na vida de Piu-piu e na história de nossa cidade ficou comentado por muitos anos nas rodas do Comércio. Fato brilhantemente contado pelo historiador Félix de Lima Júnior no livro Maceió de Outrora.

        Alagoas vivia um momento de intensa intriga política, o que nunca foi novidade. Dois grupos políticos se digladiavam: O do Senador Fernandes Lima, de quem Piu-piu era amigo pessoal e o grupo do austero governador Costa Rego, homem duro, apesar de seu amor e pendor às artes, tratava os inimigos com repressões constantes.

        Certa tarde na Rua do Comércio o nosso valente Piu-piu disse não ter medo de ninguém, nem mesmo do governador e destemperou impropérios, atacando o governador Costa Rego em um discurso improvisado nos arredores do Café Colombo.

   Dois dias depois ele estava parado em frente ao Relógio Oficial, quando cinco homens desceram do bonde vindo de Jaraguá. Dois deles derrubaram Piu-piu, outros dois seguraram pelos braços e pernas, e o último homem com uma tesoura foi cortando, arrancando o suntuoso bigode, fio por fio, sem que o valente Piu-piu desse qualquer gemido. Não deu um piu. Os amigos ficaram indignados daquela briga: cinco contra um. A polícia só chegou quando o serviço acabou. Arrancaram o bigode mais famoso do Estado.  A região do lábio superior de Piu-piu ficou deformada. Ele só retornou à Rua do Comércio muito tempo depois, quando conseguiu regenerar seu bigode de arame. Tornou-se herói.

    A rapaziada do Liceu Alagoano aproveitou o fato para versejar e cantou seus versos no Comércio: “O navio apitou… A canoa virou… O bigode do Piupiu… Marroquim arrancou”. Piu-piu, Marcolino Ribeiro da Silva, morreu aos 98 anos em Maceió no dia 5/3/65.