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Bolsonaro e a produção social da ignorância
Pensei: As notícias sobre a crise sanitária vingaram. Melhormente informada, a população resolveu cuidar-se. Não estávamos estúpidos; apenas ignorávamos o que sucedia no País. Filipe Deodato Pereira me contrapõe: O povo não deduziu das notícias o comportamento a ser adotado. Os fatos alcançaram as pessoas. A Covid contaminou algum parente, amigo, vizinho. O olor da morte foi o motivo. Filipe tem toda a razão.
Fui vacinado. Aplicaram-me vírus. O vírus da vacina é “danificado”. Não me adoecerá, mas porá o meu sistema imunológico de alerta. Esse complexo corporal que sou aprende a se defender desse ser primitivo que ameaça o Planeta. Confio na deusa da Ciência, Atena, e nas explicações científicas. Vírus: agente infeccioso microscópico, sem sistema metabólico, que se hospeda em células vivas para se replicar.
O vírus, por ser muito simples, tem grande capacidade de mutação. Difícil combatê-lo. A defesa viável é o organismo humano precatar-se ao reconhecer o vírus. A convivência com o vírus é a única imunização. Quando os religiosos cristãos chegaram à América mataram milhares de indígenas simplesmente contaminando-os com gripe. Nós não morremos de gripe comum porque fomos ambientados ao vírus que a provoca.
Ignorante: “quem não tem conhecimento por não ter estudado, praticado ou experimentado”, Houaiss. Os ignorantes não sabem, mas a mitologia grega também lhes confere um deus: Procusto. Ele inspira quem se conduz tão só por pensamentos baseados em padrão prévio e estanque de compreensão sobre qualquer assunto. Procusto recomenda a quem o cultua que reduza a realidade a uma extensão de si mesmo.
A seguidores de Procusto emprestam pouco crédito à Ciência. Exemplo: a praga que nos assola. Reiteradamente os cientistas do mundo, incluindo os brasileiros, advertiram que o nosso comportamento em face do coronavírus nos seria letal. Grande parte da população, incluindo autoridades importantes, como o presidente da República, desdenharam o mundo de Atena, a deusa do saber. Acusaram Ciência de Cassandra.
Cassandra, mulher inteligente, bonita, era devota de Apolo. Apolo, apaixonado, ensinou-lhe os segredos da profecia. Apolo assediou Cassandra, que se negou a satisfazer-lhe os ímpetos sexuais. O deus vingou-se, lançou uma maldição sobre Cassandra: suas previsões continuariam verdadeiras, porém, ninguém mais acreditaria nelas. Ela passa a ser imputada de louca ao tentar avisar seu povo dos perigos que lhe eram evidentes.
Nossos cientistas preveniram. Mas, disse Bolsonaro, mito de muitos brasileiros: esse alarde é coisa de comunista; uma gripezinha; já está acabando; tome remédio para malária (causada por parasito, não por vírus); tome vermífugo (bom contra vermes, não contra vírus). E Jeová acima de tudo. Tudo em vão. Aliás, o deus de Bolsonaro, em tendo os poderes que lhe atribuem, se quisesse, aniquilaria o vírus num átimo, não?
Com poucas exceções, reiteradamente as autoridades da República, Bolsonaro à frente, propositadamente, investiram na produção social da ignorância. Na contramão da Ciência, negou-se a realidade, mentiu-se, rezou-se, desinformou-se. O presidente aplicou-se em agressividade. Insultaram-se leis e tribunais. Atrasou-se investimento em vacina. Por boa sorte, algo de adequado nos veio de alguns governadores e prefeitos.
Fanáticos negacionistas renegam até a política. Acusam os governadores e os prefeitos que tomam (uma triste necessidade) as medidas salvadoras de distanciamento pessoal e isolamento social de serem futuros candidatos. Os ignorantes gerais que seguem esses ignorantes específicos caem nessa esparrela, como se uma candidatura política fosse um mal. Candidatar-se é fazer um bem. Que aprendamos a escolher.
Na Idade Média o mundo nunca foi tão divino e tão ignorante. Acreditava-se que todas as coisas aconteciam por conta do deus católico: Faça-se a sua vontade. Cria-se em miasmas, “emanação a que se atribuía, antes das descobertas da microbiologia, a contaminação das doenças infecciosas e epidêmicas” (Houaiss). Não há miasmas, há contágio. Os contagiados não são mais notícia longínqua, são fatos próximos.
A única coisa mais letal do que o fanatismo religioso são os serezinhos microscópicos. A arma capaz de oferecer combate às doenças em geral e à Covid em particular é a Ciência. Se há alguma salvação, e está havendo, ela vem de cientistas, de profissionais da saúde, de gente que se dedica a cuidar. Não vá atrás de ignorante. Não é por acaso que estamos na rabeira do mundo quando se fala em educação.
* É escritor, professor, psicanalista e jornalista
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