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Praticar o próprio tempo

12/03/2021
Praticar o próprio tempo

Sobre o tempo sempre se voltaram a física, a biologia e a filosofia. Gosto de acompanhar o tanto que se produz de teoria sobre o assunto. Para o meu cotidiano, defino o tempo como o correr da vida. Há outras acepções, equações, indagações; há negações da existência do tempo. Mas há a vida, ela começa e acaba. Tempo de vida e de morte. Tempo que urge. Esse tempo apressado me fascina e me assusta. Fascina-me a ponto de eu ocupá-lo, tanto quanto posso, com tão somente o que me apraz. Assusta-me de modo a eu investir tempo em cuidar do mais tempo de que posso dispor.

“Mais do que um conceito único, o tempo se apresenta como uma força de inúmeras faces, e as discussões sobre essa força se estendem aos mais diversos campos de conhecimento, entre eles a biologia e a física. […] A vivência do tempo é uma condição de se estar no mundo, e é inerente a todos os seres vivos estar sob a ação dessa força da natureza” (Helena Mollo, http://migre.me/fssPQ). O tempo, pois, não brinca, ele é implacável e acontece. O tempo, para o meu sentir, se faz acontecer com demasiada rapidez. Minha idade me o vai informando sem comiseração.

Dentro de um dado tempo, praticamos a vida: gozamos a vida, sofremos na vida; vivemos a vida, falecemos da vida. A história de cada um, para cada um engendra um tempo; é o seu tempo de vida. Sabemos que o tempo se nos apresenta de muitas formas, mas três nos interpelam: o tempo como eu-corpo (o tempo da biologia); o tempo como um fenômeno da natureza (o tempo da física); o tempo como uma construção cultural (o tempo da filosofia). O tempo como biologia é o eu-corpo envelhecendo. Como natureza, o tempo apenas é. Fenômeno não explicável, apenas constatável.

Já, como cultura, segundo E. R. Leach, “existem três formas básicas para se perceber a existência do tempo: a repetição das coisas (gotas caindo de uma pia, o ciclo das estações do ano); a entropia nos objetos e em nós (nosso envelhecimento biológico, a maçã apodrecendo); e notando a passagem relativa de uma coisa em relação à outra (uma maçã ‘envelhece’ mais rápido que um homem). Todas essas formas de sentir o tempo mostram-nos que a sua regularidade não é uma parte intrínseca da natureza, e sim que é uma noção fabricada pelo homem (http://migre.me/fssJ4).

O tempo que apenas é, esse tempo nem mais nem menos da natureza, vai me envelhecer, vai me matar. Esse tempo da física informa o tempo da biologia. Nesse tempo, eu e todo mundo, um pouco depois de agora, vamos acabar. No tempo da cultura, porém, eu tenho alguma margem de manobra. Nesse tempo, interessa-me o relativo de mim mesmo com as coisas que me dão prazer. Eu filosofo: faço contas e disponho as coisas de que gosto para vivê-las. No meu tempo, terei o usufruto dessas coisas. Posso gozá-las e frui-las. São as coisas de fazer a minha vida interessante.

Esses assuntos me ocorreram porque ouvi a mulher pedindo certezas da afeição do sujeito. Não, não bisbilhotei a conversa alheia; ela me veio às orelhas; não tive como evitá-la. Dado o conteúdo, sim, me fiz curioso e escutei-a com gosto. Parecia-me que a mulher carecia das palavras que o amor romântico, com sobras do amor provençal, impõe (nesse tipo de amor, importa menos o ato amoroso; vale mais a assunção declaratória de amar). Já o homem (que me parecia constrangido) lembrava que amor é o gesto, a atenção. Desconfiei que a coisa acabaria em dissonância afetiva.

Em dado momento, com muito vagar, o sujeito passou a fazer perguntas que ela respondia um tanto a contragosto: – Quantos vinhos tomarei? – Hoje? Não entendi, não sei… – E músicas? Quantas? – Falas da vida? Pelo resto da vida? – Quantos invernos viverei? – Eu não sei. O que você quer dizer? – Quero dizer que tenho um tempo para viver, um tempo para o qual eu dou extremo valor. – Mas, e daí? – Bem, eu tenho um tempo, eu tenho algumas escolhas… Tanto quanto pude, eu escolhi o melhor para trazer à minha vida, ao meu tempo. E eu escolhi viver o meu tempo com você.

Houve silêncio no tempo dos dois. Fiquei enternecido. O meu tempo se suspendeu. Não me consenti voltar para tomar a cena, seria por demais impertinente. Mas, com algum entusiasmo criador, a imaginei: ela, abalada, silenciou, entendeu-se na vida dele, tomou-se de carinho, pensou no tempo da vida que ainda viveriam, talvez, se soubessem vivê-la. Pôs-se triste consigo, mas com um sorriso alegre pelos dois. Os olhos trouxeram lágrimas e se puseram a brilhar. Ela intuiu que era amada. Ele ficou comovido com o jeito como ela o percebeu. É bom estar no tempo de alguém.

 

Léo Rosa de Andrade Doutor em Direito pela UFSC. Psicanalista e Jornalista.