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A invasão das Guaraçumas
O extenso calçadão da praia da Avenida da Paz, arborizado com amendoeiras e jardins gramados, foi o palco da nossa mocidade, onde toda noite a juventude fazia uma festa; andando de bicicleta, patins e patinetes, jogando ximbra (bola de gude), rodando pião, brincando de rouba-bandeira ou gata-pirada empurrando um aos outros nos bancos de concreto até sobrar apenas um, o vencedor. Às vezes um namoro, um aperto nas meninas, a puberdade florescia. Nas noites das quartas-feiras os moradores sentavam-se nos longos bancos de madeira embaixo do coreto para ouvir música clássica, popular e jazz. Era a retreta da Banda do Exército Brasileiro, às vezes da Polícia Militar.
Nesse paraíso havia uma praia extensa de areia branca, nosso campo de futebol. Depois do jogo, mergulhávamos e nadávamos até o fundo do mar perto dos navios fundeados. No retorno, muitas vezes os botos nos acompanhavam como estivessem nos protegendo, brincavam, mergulhavam e emergiam, soltando um som gutural como se estivessem conversando com os jovens nadadores. Ao sairmos do mar íamos em direção às paqueras que esperavam numa sombrinha tomando banho de sol ou jogando baralho. Como era gostoso entrar no mar com a namorada, os dois segurando na boia de pneu de caminhão e as pernas se cruzando embaixo d’água.
À tarde quando a maré estava cheia, a moçada partia para o trapiche que entrava mar adentro no início da praia de Jaraguá. Era uma espécie de ancoradouro, de píer, com um trilho em cima e na ponta, onde o mar era fundo, havia um sólido armazém de telhado de zinco, onde empilhavam sacos de açúcar para transbordo, por balsas, aos navios. Nós nadávamos até o armazém, subíamos pelas palafitas de madeiras grossas e pelas grades do imenso portão, logo alcançávamos o telhado de zinco quente. Ao olhar a imensidão do mar e dos coqueirais em volta, nos sentíamos os donos do mundo. Em seguida, o mergulho: com o corpo retesado nos jogávamos ao mar, era uma queda de segundos, 15 metros de altura, um vento gostoso passava na barriga até batermos e afundarmos na água. Imediatamente subíamos para outro salto. Quando aparecia o vigia, todos nós mergulhávamos. Ao cair dentro d’água, alguém puxava, os outros continuavam a saudação: “O galo canta… o macaco assovia… banana de jegue… no cu do vigia.” Certa tarde um colega pulou e não retornou, ficamos mergulhando para tentar trazer o Tony para superfície e nada, desesperados chamamos os bombeiros que tentaram resgatar o corpo com embarcação e mergulhadores. Nunca foi encontrado o corpo de nosso amigo. Foi tristeza geral, nossos pais proibiram essa brincadeira, mas dentro de um mês os meninos da Avenida estavam pulando novamente do zinco do trapiche.
Toda manhã, antes de pegar o bonde para o Colégio Marista, eu dava um mergulho no meu mar. Certa vez notei que a água não estava com a cor verde azulada habitual, a superfície tremeluzia, alguma coisa estranha acontecia, quando cheguei à beira mar estavam diversos pescadores jogando redes, anzóis, tarrafas. Era um enorme cardume de guaraçumas que invadiu a enseada da praia da Avenida. Dei o mergulho, notei vários peixes nadando à beira mar. Um arrastão chegava com os pescadores puxando, a rede estava cheia, quase estourando de tanto peixe. Fui ao Colégio, quando retornei perto do meio dia, a praia estava cheia de gente com caniço e samburá. O cais do porto repleto de pescadores profissionais e amadores jogando suas varas, suas redes. No dia seguinte continuou a inexplicável invasão das guaraçumas. Quase toda população de Maceió levou caniço ou tarrafa para praia e para o cais. À noite a enseada da praia da Avenida tornou-se uma festa: fachos acesos à beira do cais e nas canoas dentro d’água. As guaraçumas atraídas pelo fogo dos fachos pulavam e caíam dentro da canoa.
Ate hoje ninguém soube explicar este fenômeno. Por algum tempo a miséria havia acabado. Havia guaraçuma para quem quisesse: o pobre, o rico, o miserável, menino, velho e mulher. Maceió se fez em festa. Foram treze noites, treze dias, o mar ficou cinzento de tanto peixe pular, cardumes e mais cardumes renovavam-se invadindo a enseada. Fenômeno inexplicável e extraordinário.
Nessa época os negociantes de automóveis encheram Maceió com um novo tipo de jipe, vendido em grande quantidade, logo chamados de guaraçumas. Até hoje, o jipe 1954 é chamado de Guaraçuma pelos colecionadores.
A Gazeta de Alagoas publicou uma reportagem no dia 28 de abril de 1954, dizia assim: ABUNDÂNCIA E PESCA – “O pescado guaraçuma afluiu em quantidade espetacular à praia da Avenida da Paz. Gente muita se fez da pescaria, aproveitando o extraordinário volume de peixes surgidos ali. Muita gente pobre serviu-se à farta desse gênero de alimentação. Nesses últimos dias houve na cidade peixe de muito boa qualidade e extremamente barato. Muito pescado vendido a preço irrisório…”
Muitos técnicos tentaram explicar esse fenômeno: pesquisadores da UFAL, engenheiros de pesca do Recife. Veio gente da Bahia e até do Japão. Cada qual com uma teoria diferente. Eu gostava de conversar com um amigo, Cabo Jorge, motorista do comandante da Polícia, (meu pai). O Cabo era pai de santo de um terreiro pras bandas da praia de Ipioca, e me deu a seguinte explicação sobre a invasão das guaraçumas: “Foi Yemanjá, a rainha do mar, quem presenteou a cidade com 13 dias de fartura com muito peixe, para compensar ela ter levado o Tony que está vivendo com ela no fundo do mar.” Ainda hoje acho a teoria do velho Cabo Jorge a mais plausível.
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