Brasil

Sem base científica, governo amplia uso da cloroquina

20/05/2020
Sem base científica, governo amplia uso da cloroquina
Médico segura cloroquina

Divergências sobre uso da cloroquina foram um dos motivos para demissão de Mandetta e Teich

O Ministério da Saúde divulgou nesta quarta-feira (20/05) um novo protocolo sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para o tratamento de pacientes com covid-19, permitindo que os medicamentos sejam administrados também em casos leves da doença provocada pelo novo coronavírus.

A mudança do protocolo para ampliar a possibilidade de uso dos medicamentos, utilizados no tratamento da malária, foi feita a pedido do presidente Jair Bolsonaro. O presidente vem defendendo insistentemente a substância para combater a pandemia do coronavírus, apesar de não haver comprovação científica da eficácia do medicamento em pacientes com covid-19.

“O último protocolo permitia a cloroquina apenas em casos graves. E agora não, esse novo protocolo é a partir dos primeiros sintomas. Quem não quiser tomar não toma”, disse Bolsonaro ao anunciar, nesta terça-feira, que um novo protocolo seria publicado nesta quarta. “Quem é de direita toma cloroquina. Quem é de esquerda toma Tubaína”, ironizou, aos risos.

No final de março, o Ministério da Saúde incluiu em seus protocolos a sugestão de uso da cloroquina em casos de covid-19 com gravidade média e alta e com monitoramento em hospitais, mantendo a norma corrente na medicina de que cabe ao médico a decisão sobre prescrever ou não a substância ao paciente. A pasta distribuiu ao menos 3,4 milhões de doses do medicamento para os sistemas de saúde dos estados.

O novo protocolo orienta o uso também em casos leves da doença, especificando as dosagens a serem ministradas de acordo com o quadro do paciente e o momento do tratamento. O documento libera ainda a aplicação das substâncias em combinação com o antibiótico azitromicina.

“Fica a critério do médico a prescrição, sendo necessária também a vontade declarada do paciente”, diz o protocolo, após apontar que ainda não há “meta-análises de ensaios clínicos” que comprovem o “benefício inequívoco dessas medicações para o tratamento da covid-19”.

O protocolo ressalta também que “não existe garantia de resultados positivos” e que os medicamentos podem até mesmo “agravar a condição clínica”.

Segundo o documento, para ser tratado com a cloroquina ou seu derivado hidroxicloroquina, o paciente deve assinar um termo de consentimento em que constam como possíveis efeitos colaterais “redução dos glóbulos brancos, disfunção do fígado, disfunção cardíaca e arritmias, e alterações visuais por danos na retina”.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) não recomenda o uso da droga, mas autorizou a prescrição em situações específicas, inclusive em casos leves, a critério do médico e em decisão compartilhada com o paciente.

A insistência de Bolsonaro em ampliar o uso da cloroquina em pacientes diagnosticados com o coronavírus foi um dos motivos de divergência que levou à demissão do ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e menos de um mês depois, de seu sucessor, Nelson Teich. O presidente havia sinalizado que alteraria o protocolo sobre a cloroquina mesmo sem a concordância de Teich.

Desde que o ministro pediu demissão, na última sexta-feira, o Ministério da Saúde está sob comando interino do general Eduardo Pazuello, que já atuava como número dois da pasta. Nesta terça, Bolsonaro elogiou o trabalho do general no ministério, afimando que ele “está indo muito bem”.

Estudos recentes sugerem que a cloroquina e a hidroxicloroquina têm baixa eficácia em pacientes de covid-19 e podem até elevar o risco de morte em decorrência da doença. Em meados de abril, cientistas brasileiros interromperam precocemente parte de um estudo sobre a cloroquina depois que 11 pacientes com o coronavírus que receberam uma dose elevada de cloroquina morreram até o sexto dia de tratamento.

Críticas

Pouco depois de o Ministério da Saúde editar o novo protocolo, o diretor executivo do Programa de Emergências em Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), Michael Ryan, afirmou que “neste momento a cloroquina e a hidroxicloroquina não foram identificadas como eficazes para o tratamento da covid-19”.

“Todas as nações, particularmente aquelas com autoridades reguladoras, estão em posição de aconselhar seus cidadãos sobre o uso de qualquer droga. Entretanto, sobre a hidroxicloroquina e a cloroquina, que já são licenciadas para muitas doenças, eu diria que, até esse estágio, nem a cloroquina nem a hidroxicloroquina têm sido efetivas no tratamento da covid-19 ou nas profilaxias contra a infecção pela doença. Na verdade, é o oposto”, disse Ryan.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), declarou, segundo o portal G1, que não tem até o momento “nenhum estudo conclusivo sobre a cloroquina”.

“O único estudo já publicado por pesquisadores da Fiocruz com pacientes de covid-19 foi o CloroCovid-19. Os resultados iniciais do estudo mostram que pacientes graves com covid-19 não devem usar doses altas de cloroquina. A pesquisa tem como objetivo avaliar a segurança e a eficácia de duas dosagens diferentes do medicamento e analisou 81 pacientes com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). As primeiras conclusões do estudo apontaram que pacientes graves com covid-19 não devem usar a dose recomendada pelo consenso de tratamento chinês. Este foi o primeiro estudo no mundo que apresentou evidências sobre esse tipo de uso”, declarou a Fiocruz.

Uma arma política

Além de Bolsonaro, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, também vem defendendo o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina em casos de infecção pelo coronavírus. Nesta segunda-feira, Trump disse que está tomando hidroxicloroquina “preventivamente” contra a covid-19.  O remédio também passou recentemente a ser promovido pelo venezuelano Nicolás Maduro.

Nos últimos dois meses, Trump propagandeou com entusiasmo a droga como um tratamento potencial eficaz contra a covid-19. Ele fez a primeira menção à hidroxicloroquina em 21 de março, após o suposto potencial da droga ter sido propagado em círculos de extrema direita na internet que promovem teorias conspiratórias e desconfiança contra o establishment científico. À época, o remédio também ganhou espaço na rede de TV populista Fox News.

A coisa toda teve origem em um anúncio do controverso pesquisador frances Didier Raoult, que no dia 17 de março que um estudo preliminar em 24 pacientes havia apontando que a hidroxicloroquina havia sido eficaz no tratamento da covid-19. No entanto, o estudo de Raoult foi criticado em círculos científicos por causa da sua amostra limitada.

Em 23 de março, dois dias depois de Trump mencionar o remédio, foi a  vez de o presidente brasileiro Jair Bolsonaro seguir o exemplo do americano e passar a sistematicamente promover o fármaco, mesmo sem estudos amplos que comprovassem sua eficácia.

No Brasil, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que se opôs a uma adoção generalizada da cloroquina no SUS, apontou na semana passada que o entusiasmo de Bolsonaro pelo remédio se encaixa na estratégia do governo brasileiro de tentar forçar uma reabertura da economia, mesmo com a ausência de embasamento científico. “Ele quer um medicamento para que as pessoas sintam confiança, para retomar a economia. E isso a pessoa fica na sua tranquilidade achando que o medicamento resolve o problema”,  disse Mandetta na sexta-feira.

Bolsonaro chegou a se referir ao medicamente como “cura” e passou a usá-lo como arma política. Ele usou um pronunciamento em cadeia nacional para promover a droga e ordenou que os laboratórios das Forças Armadas passassem a produzi-la em larga escala.

Nas redes sociais, membros do seu círculo radical e apoiadores têm atacado figuras que pedem cautela na adoção generalizada, afirmando que eles “torcem pelo vírus”. Alguns apoiadores chegaram a subir a hashtag #RemédiodoBolsonaro. No meio dessa discussão, temas como falta de respiradores, leitos de UTI e outras medidas parecem ter ficado em segundo plano nas prioridades do presidente brasileiro