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“Enquanto não estiver controlada em todo o mundo, covid-19 será ameaça”

21/04/2020
“Enquanto não estiver controlada em todo o mundo, covid-19 será ameaça”
Pessoas de máscara na rua em Leipzig, na Alemanha

“Se apenas focarmos eventos em curso dentro de nossas fronteiras, estaremos permanentemente vulneráveis”, diz cientista

Há pelo menos três décadas, o cientista americano Dennis Carroll tenta alertar o mundo sobre os riscos de doenças transmitidas por animais. É o caso da covid-19, doença transmitida pelo coronavírus Sars-Cov-2, responsável pela pandemia em curso.

Carroll supervisionou a divisão de doenças infecciosas da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) por 30 anos, tempo suficiente para notar a ineficácia do estudo reativo de novos vírus. Era preciso encontrá-los antes que “descobrissem” os humanos.

Ainda na USAID, o cientista criou o PREDICT, programa que deu passos importantes para a compreensão da interação entre os vírus, a vida silvestre e o comportamento humano. Foram dez anos de pesquisas, até o encerramento no ano passado, após o presidente Donald Trump cortar a verba destinada à iniciativa.

O propósito de Carroll exigia uma escala bem mais ampla. Por essa razão, criou o Global Virome Project (Projeto Viroma Global), uma parceria entre diferentes países que pretende transpor os feitos do Projeto Genoma Humano para o universo dos vírus.

Nesta entrevista à DW Brasil, concedida por telefone do barco onde vive, em Washington D.C., o cientista detalhou o escopo da iniciativa, comentou a reação negativa enfrentada pelo projeto na comunidade científica e criticou a atuação individualizada dos países na resposta à pandemia. Na semana passada, Trump suspendeu o repasse anual dos EUA à Organização Mundial da Saúde (OMS).

“Se apenas direcionarmos os recursos para os eventos em curso dentro de nossas fronteiras, estaremos permanentemente vulneráveis ao que acontece fora desses limites”, afirma. “Jamais deveríamos ter que encarar outra pandemia desse tipo. É evitável.”

DW Brasil: O senhor tem criticado a falta de articulação entre os países na resposta à pandemia. Qual é a importância do diálogo entre nações neste momento?

Dennis Carroll: Este é um vírus muito perigoso, que dá sinais de permanência entre nós por um período bastante longo. Se apenas direcionarmos os recursos para os eventos em curso dentro de nossas fronteiras, estaremos permanentemente vulneráveis ao que acontece fora desses limites. Mesmo que seja possível controlar a situação em nossos países, o vírus será reintroduzido se não for devidamente controlado em outras partes do globo. Não estaremos seguros até tratarmos isso como um problema global e tomarmos ações compartilhadas.

Um evento planetário como este impõe vulnerabilidades e riscos compartilhados. A única forma de nos protegermos é garantir que todos estejam resguardados. Há países e regiões do mundo que são muito mais vulneráveis ao impacto potencial desse vírus. A comunidade internacional deve reconhecer a importância de haver uma responsabilidade compartilhada de assistência e trabalho junto a essas populações. Não só para minimizar os riscos a que estão expostas, mas também garantir que possam combater o avanço do vírus.

Enquanto a situação não estiver controlada em todo o planeta, irá representar uma ameaça a todos nós. Nas regiões onde o contágio aconteceu mais cedo, teremos lições importantes sobre quais ações funcionam no sentido de manter o vírus sob controle. Também será possível observar as melhores práticas médicas para minimizar o impacto e salvar vidas. Pelo compartilhamento dessas informações e experiências, os países podem aprender uns com os outros e aplicar essas medidas.

Quais são os principais eixos de atuação do Global Virome Project (GVP)?

A proposta do GVP é elevar a escala da descoberta de vírus a um patamar muito acima do que foi atingido pelo PREDICT. O projeto seria uma parceria global administrada em cada país, mas com uma plataforma de dados compartilhada, que armazenaria todas as informações sobre os vírus descobertos. Os países se beneficiariam mutuamente do trabalho feito por cada um. Nossa meta é documentar e caracterizar 75% do viroma global em dez anos.

O primeiro eixo do projeto seria o desenvolvimento de uma base de dados abrangente. Ali constaria onde cada vírus está circulando hoje, em quais animais, e a proximidade entre os hospedeiros e populações humanas. Essa densa base de dados seria usada, depois, para identificar áreas com potencial de propagação e usar esse conhecimento para modificar práticas que a favoreçam.

O melhor manejo de mercados e da forma como interagimos com a vida selvagem pode minimizar as chances de contágio. Caso a transmissão venha a ocorrer, seria identificada com maior velocidade, por meio de vigilância rotineira nesses pontos focais. Isso eliminaria o risco de perdermos o controle, como vimos acontecer com a covid-19.

O segundo fluxo de dados gerado pelo GVP seria uma grande base de dados genéticos. Teríamos o perfil de sequenciamento genético de cada vírus do planeta, o que teria um profundo impacto sobre nossa habilidade para desenvolver futuras medidas de combate e diagnósticos por ferramentas analíticas.

Iremos gastar uma cifra superior a US$ 2 bilhões para desenvolver uma vacina contra a covid-19. Quando outro tipo de coronavírus aparecer e se alastrar por populações humanas, a vacina não será mais eficaz. Sabemos isso de experiências anteriores. Teríamos, então, que começar do zero e criar outra vacina, o que deveria levar dois anos, a um preço estimado de US$ 1 bilhão.

Como o GVP modificaria esse cenário?

Seria uma oportunidade de construir uma base de dados sobre os vírus antes de emergirem e chegarem a nós. As informações não seriam usadas para simplesmente desenvolver uma vacina contra um único tipo de coronavírus, e sim ter as sequências de dados para todos os 5 mil tipos. Teríamos um amplo leque de ferramentas à disposição. Além das vacinas e fármacos, a possibilidade da manipulação genética. Fundamentalmente, a ideia do GVP é transformar totalmente como nos preparamos para futuros riscos virais. Não é sobre simplesmente esperar que eventos de contágio ocorram e lutar para elaborar uma resposta, como estamos vendo acontecer com a covid-19.

A iniciativa enfrentou resistência entre cientistas que criticavam o orçamento de US$ 1,5 bilhão e pediam maiores investimentos em vigilância, no lugar da abordagem preventiva.

Primeiro, vamos falar sobre os custos do GVP. O projeto custaria US$ 150 milhões por ano, divididos entre parceiros e governos mundo afora. Uma grande parcela desse montante viria de investimentos que já existem dentro dos países. É o caso da China, país que demonstrou forte interesse na iniciativa e vem se estruturando para criar um projeto nacional nessa área. A China vê a construção dessa grande base de dados como uma oportunidade transformador para proteger o país no futuro.

O custo exigido pelo GVP absorveria recursos que já existem no país, não haveria a necessidade de novos aportes. Há, na China, uma grande expertise que permitiria ir a campo e coletar os tipos de amostras de que estamos falando, incluindo a análise de dados. De modo similar, a Tailândia está caminhando para estabelecer o seu projeto nacional. Eles desejam alavancar plataformas técnicas e operacionais já existentes e absorver recursos das estruturas de fomento. Eles estão avançando nessa agenda.

Esse custo se baseia na necessidade de apoiar países com maior necessidade de apoio externo em suas plataformas para alavancar o processo. Podemos considerar o valor alto, mas compare com o montante empregado na resposta à pandemia da covid-19. Somente nos EUA, o impacto pode superar a marca de US$ 3 trilhões. Portanto, US$ 150 milhões por ano para transformar totalmente nossa capacidade de endereçar todas as ameaças de contágio viral futuras, no início do século 21, é uma cifra extraordinariamente pequena.

Por que a reação na comunidade científica, então?

No início da minha carreira, trabalhei no laboratório dirigido pelo Dr. Jim Watson, um dos autores do modelo de dupla hélice para o DNA. O envolvimento dele como liderança do Projeto Genoma Humano ensejou intensas discussões sobre o valor da iniciativa. Como agora, havia uma divisão clara. Geneticistas que pesquisavam um distúrbio genético específico estavam muito focados no sequenciamento genético que gerou o problema. Eles não achavam importante gastar dinheiro para abrir todo o genoma humano e estavam apenas interessados nas pesquisas de doenças específicas, as quais deveriam absorver os recursos.

Já os pesquisadores envolvidos no projeto defendiam que nossa capacidade em lidar com os desafios da saúde genética seria beneficiada pela abertura e entendimento de todo o genoma humano. Os distúrbios específicos e outras tantas questões ainda desconhecidas só poderiam ser melhor compreendidas pelo volume de dados gerado pelo projeto.

Passados 30 anos, não restam dúvidas sobre os benefícios do Projeto Genoma Humano. A ciência que lida diretamente com a genética humana foi revolucionada, e temos uma compreensão bem mais profunda sobre distúrbios genéticos específicos dos dias de hoje. Foi aberta uma nova geração de tecnologias e possibilidades.

O universo da genética humana foi totalmente transformado por abraçar a ideia da big data. É uma discussão muito semelhante a esta do GVP. Há cientistas e virologistas especificamente interessados em vírus conhecidos que veem a adição de dados sobre todo o viroma como uma distração de sua capacidade em focar no ebola, covid-19 ou zika. Nós que defendemos o GVP entendemos que a compreensão de dados sobre todo o perfil genético viral irá transformar o tipo de questões que podemos fazer, totalmente inovadoras no sentido de futuras aquisições biomédicas e analíticas.

Você espera que a pandemia atual consolide a importância da abordagem preventiva no combate a novos virus?

Acredito que essa experiência irá reforçar o entendimento de que não podemos seguir fazendo a mesma coisa dos últimos 40 anos e esperar resultados melhores. A covid-19 deveria ser um grito de alerta para o fato de que não podemos ficar surpresos com o aparecimento de novos vírus.

Precisamos estar mais bem informados e prevenidos sobre as ameaças que iremos enfrentar e o fato de que todas elas já existem e circulam na vida selvagem. Precisamos repensar completamente a forma como nos preparamos. E aproveitar a oportunidade de ir a campo e começar a adquirir as percepções que irão permitir estarmos melhor preparados para a propagação inevitável das próximas famílias de coronavírus e outros tipos.

Estou otimista. No Congresso dos EUA, há parlamentares sinalizando um grande interesse no incentivo público a uma iniciativa desse tipo. Queremos expandir esse diálogo para outros parceiros e instituições ao redor do mundo. Jamais deveríamos ter que encarar outra pandemia desse tipo. É evitável, e existem ações que podemos tomar agora para fazer do planeta um lugar mais seguro.