Brasil
A corrida do ouro que ameaça a Amazônia
Vistos do alto, os arredores de Creporizão, uma cidade isolada da Amazônia no Pará, parecem um cobertor verde-escuro. Ao longo das estradas e rios que atravessam a floresta tropical, a vista é outra, devido às manchas marrons lamacentas que marcam suas margens: garimpos de ouro ilegais.
Todos os dias, centenas de exploradores procuram o metal precioso, e esperam encontrar algo nessa região. Alguns chegam aos garimpos de barco, rio acima e rio abaixo; outros vêm em pequenos aviões. São imagens que se tornaram cotidianas na maior floresta tropical do mundo, um dos principais motivos da vasta destruição da mata.
José Maria – que prefere ocultar seu sobrenome – é um dos garimpeiros vindos do estado do Maranhão, cerca de mil quilômetros a leste. Esperando à margem do rio para ser levado de barco até uma das minas, ele se defende: “A gente faz trabalho honesto aqui, para ganhar a vida. Qual é o problema?”
“Já está havendo uma corrida do ouro”
Os garimpos em que José e seus colegas trabalham se situam nos mais de 2 milhões de hectares da reserva onde vive uma das maiores etnias indígenas da Amazônia, os munduruku. Suas terras, ricas em minerais, são protegidas pela Constituição brasileira de 1988.
Segundo uma pesquisa de opinião de 2019, uma maioria esmagadora da população do Brasil é contra a mineração nas áreas indígenas. No entanto é justamente isso o que o presidente Jair Bolsonaro exige num controverso projeto de lei apresentado ao Congresso. Rodrigo Maia, o presidente da Câmara dos Deputados, apesar de considerar o projeto constitucional, adiou a votação, por não ser “o momento certo”.
O Ministério de Minas e Energia afirmou à DW que planeja regular as atividades mineradoras em terras indígenas, acrescentando ser necessário consultar as comunidades indígenas, para que participem da extração de ouro. Embora alguns mundurukus tenham cedido à sedução do dinheiro rápido, a maioria da comunidade continua se opondo ao garimpo ilegal.
Aproximadamente um décimo da área do Brasil é classificada como “indígena”, dividindo-se em mais de 400 reservas. No entanto, segundo a Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg), há mais de 450 zonas de mineração ilegais na Amazônia brasileira. Uma lei seguindo a vontade de Bolsonaro poderia acarretar um aumento dramático de tais atividades mineradoras.
“Se a lei passar, o teto vai cair na nossa cabeça”, comenta o antropólogo americano Glenn Shepard, que trabalha junto à população indígena afetada pelo garimpo ilegal. “A lei vai aquecer novamente as minas de ouro ilegais. Já está havendo uma verdadeira corrida do ouro, fora do controle dos grupos indígenas.”
A equipe de jornalistas Unearthed, do Greenpeace, noticiou que os garimpeiros planejavam continuar trabalhando mesmo durante a pandemia do novo coronavírus, acirrando assim os temores de contágio dos indígenas com a covid-19. O Ministério das Minas e Energia afirmou à DW que, antes mesmo da votação do projeto de lei, já recebeu mais de 4 mil solicitações para atividades mineradoras nas terras dos nativos brasileiros.
Riqueza à custa de vidas indígenas
Garimpeiros e indígenas encontram-se em conflito constante. Em julho de 2019, a Fundação Nacional do Índio (Funai) registrou que um líder da comunidade waiãpi fora morto por garimpeiros no Amapá. Segundo dados da Global Witness, só em 2018 foram mortos 20 ambientalistas e defensores dos direitos à terra no Brasil. A ONG internacional aponta que, com 43 assassinatos registrados em todo o mundo naquele ano, a mineração foi o setor mais mortal para os ativistas.
A mineração também causa graves danos ao meio ambiente, contribuindo decisivamente para o desmatamento: de acordo com a revista especializada Nature Communications, entre 2005 e 2015 ela foi responsável por 9% de toda a mata destruída na Região Amazônica.
Uma análise de imagens de satélite publicada pela ONG Monitoring of the Andean Amazon Project (MAAP) mostrou que em 2019 um total de 2 mil hectares de árvores foi derrubado na reserva dos índios munduruku – mais do que o dobro do ano anterior.
Em novembro de 2019, dezenas de líderes indígenas amazônicos se reuniram em Brasília para denunciar e apresentar queixa à autoridades competentes pelas irregularidades em suas terras.
“Seria a morte do nosso povo”: assim Alessandra Korap Munduruku, uma líder do estado do Pará, que participou do encontro, resume os efeitos de uma eventual legalização da mineração. A busca pelo ouro traz doenças, prostituição, dependência de drogas entre as crianças e conflitos violentos entre os homens, além de envenenar os peixes com mercúrio, enumera.
O mercúrio despejado no rio Tapajós durante o garimpo se espalha por seus afluentes, também pelos que passam perto de Creporizão e são fonte de água para as comunidades locais.
O neurologista Erik Jennings, atuante na cidade de Santarém, Pará, tirou amostras de sangue e cabelo de 112 nativos para medir seus níveis do metal pesado, numa pesquisa pioneira. “É um genocídio lento”, revelou à DW. “Mercúrio no corpo pode causar graves impedimentos cognitivos e visuais, e deformar os fetos.”
Ouro anônimo
Até mesmo o comércio de ouro legal no Brasil é, em grande parte, não regulado, o que permite negócios ilegais, enquanto a Região Amazônica vai sendo cada vez mais destruída.
“É relativamente fácil cometer fraude nesse setor. É quase impossível ir atrás de todos esses casos”, explica Luís de Camões Lima Boaventura, advogado em Santarém. “Até ser instalado um sistema computadorizado, as autoridades não têm como verificar a legalidade das transações. Para realizar uma transação ilegal com ouro, no momento só é preciso lápis e papel.”
Estimativas da Agência Nacional de Mineração indicam que a cada ano são comercializadas ilegalmente no Pará cerca de 30 toneladas de ouro, no valor de cerca de 4,5 bilhões de reais – mais de seis vezes o volume declarado oficialmente.
Quando garimpeiros como José Maria retornam a Creporizão, após a jornada que por vezes dura um dia inteiro, eles se dirigem a uma das muitas lojas de ouro da cidade. Lá, o metal trazido pelos garimpeiros é derretido e transformado em barras padronizadas.
Assim, ouro extraído ilegalmente torna-se parte do mercado global, e sua origem não pode mais ser traçada. E no fim, ninguém mais sabe que essas barras douradas são também responsáveis pelo monstruoso desmatamento, poluição ambiental e violência na Amazônia.
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