EM UMA AULA de antropologia da saúde que ministrei há uns anos, para falar sobre a importância de conhecimento popular na adesão a tratamentos médicos, eu contava um caso de Joyce, uma menina de periferia que não acreditava na eficácia da pílula. Para ela, era impossível que um remédio tão pequenininho fosse dar conta da quantidade de esperma ou do tamanho do pênis do namorado. Ela acreditava no que seus olhos conseguiam enxergar e a conta não fechava.
Quando ouviu a história, Roberto, um ex-aluno de uma universidade de elite, caiu na gargalhada, chamando Joyce de ignorante. Ele usava uma linguagem humilhante ao se referir aos pobres. Uma década depois, com base nas postagens que ele reproduz no Facebook, é fácil concluir que ele é fascinado por um presidente que acredita que vidro blindado não passa um “resfriadinho”, que nada acontece com pessoas que mergulham no esgoto ou que não há floresta na Europa – uma sobrevoada provaria isso.
Em ambos os casos, existe uma relação com a ciência que é imediata aos olhos. A grande diferença entre Joyce e Roberto é o fato que a primeira logo mudou de opinião depois de rodas de conversas com uma equipe do SUS. Roberto seguiu em carreata, demonstrando que, mesmo com toda a educação formal que teve, continua sendo um ignorante que só acredita no que vê, no que quer ver e, principalmente, nos interesses econômicos de sua família abastada.
Baseando-se no método indutivo a partir do próprio umbigo, o que temos assistido é um show daquilo que podemos chamar de ignorância orgulhosa.As duas histórias são tão estereotipadas que parecem fanfic. Mas não são. A própria realidade se tornou caricata nos últimos tempos. Acompanhando Roberto nas redes sociais nestes últimos dias, tenho refletido no que leva pessoas estudadas das melhores escolas a ignorar consensos da ciência para validar sua própria crença. Para além do inegável interesse econômico de muitos, há também uma questão de dogma, de fé e de desejo – como recentemente disse o antropólogo Orlando Calheiros.
Tenho especulado se essa relação dogmática com a auto-verdade não estaria ligada à questão da masculinidade e ao poder patriarcal. Me parece que estamos sendo governados pelos tiozões do churrasco que, enquanto “explicam o mundo”, a família toda escuta. Me parece que estamos no mundo em que homens querem impor suas verdades egoicas. Afinal, quando a ciência fala, é justamente essa certa autoridade baseada na tradição que se sente ameaçada.
Desde que a crise do coronavírus chegou ao país, o bolsonarismo se mostrou no seu estado mais bruto. O bolsonarista raiz tem orgulho de jogar uma opinião como se ela fosse equivalente a fatos científicos. Se o tiozão se gripou e não morreu, então de nada vale dezenas de anos e milhões de dólares investidos no centro de pesquisa epidemiológica do Imperial College London, que se dedica ao estudo das grandes pandemias. A minha verdade é a verdade que eu imponho ao mundo.
No dogma bolsonarista, não faria diferença se Bolsonaro adoecesse pela covid-19 e mesmo que viesse a morrer da doença. Seus seguidores o enalteceriam pela bravura e em nada mudariam de opinião, pois não estamos falando de ciência, mas de crença. São sistemas de pensamentos distintos. Um é baseado em evidência; outro, na autoridade da fé. Há muitas décadas, a antropologia se esforça para que a ciência converse com outros sistemas de conhecimento. Mas não é o caso aqui. Afinal, a crença fascista não se assume dogmática e se torna eficiente entre os seus justamente porque emula uma relação com a ciência.
Como venho refletindo há algum tempo, os fanáticos anti-ciência não se consideram anti-ciência – e entender isso é fundamental. O que está em jogo é uma disputa por novos discursos, regimes de verdade e fontes de autoridade. No mundo todo, a extrema direita flerta com o (parco) conhecimento científico que existe para legitimar as próprias crenças. O grande alerta dessa relação dos fascistas com a ciência foi disparado quando a importante revista científica Third World Quarterly publicou em 2017 um artigo racista que justificava o imperialismo. O artigo havia passado pelo sistema de peer-review, isto é, revisão pelos pares, e mesmo assim foi aprovado. Felizmente, a revista retirou do ar a publicação após denúncias.
No domingo, 29 de março, recebi uma notificação de mensagem que criticava os fanáticos que ignoravam evidência científica. Certa de que era uma mensagem de minha própria rede progressista, surpreendi-me ao ver que era de um dos tantos grupos bolsonaristas que acompanho. Os fanáticos, no caso, seriam os esquerdistas que são movidos pela ideologia. Nessa bolha, eles compartilham estudos duvidosos e até mesmo matérias antigas, como foi o caso na reportagem do El País sobre a Itália antes da crise, que obrigou o jornal a emitir uma nota dizendo que se tratava de uma matéria antiga. O mesmo ocorreu com o uso descontextualizado de uma fala de Drauzio Varella se referindo à epidemia como uma gripezinha.
Esses exemplos indicam que os fanáticos bolsonaristas não estão ignorando a ciência como fonte de autoridade e recorrendo à ordem divina de Deus para justificar seu entendimento sobre a pandemia. Eles recorrem a um recorte conveniente e oportunista da ciência. É uma espécie de populismo científico vulgar.
Esse populismo científico hoje se mostra letal. E isso não é privilégio dos autoritários tupiniquins. Donald Trump tem causado constrangimento entre as principais autoridades em epidemiologia que dão suporte às ações do governo norte-americano. Trump é o próprio ignorante orgulhoso – e agora faz jus a esse título defendendo o uso de hidroxicloroquina e azitromicina no combate ao coronavírus.
Hidroxicloroquina, em particular, é a mesma substância o que a família Bolsonaro está engajada difundir como possível cura do coronavírus – o que pode ter consequências catastróficas sobre a população brasileira que há muito tempo está exposta à automedicação e ao mercado ilegal de remédios e receitas médicas falsificadas. Mas nem Donald Trump nem Boris Johnson ganham de Jair Bolsonaro quando o assunto é estupidez humana. Nenhum líder do mundo tem sido tão irresponsável, danoso e até genocida do que aquele que ocupa o Palácio do Planalto. Como disse a manchete da revista norte-americana The Atlantic: “O movimento de negação do coronavírus tem agora um novo líder”.
O antídoto contra o populismo científico é um só: a ciência consolidada. Como apontou Mariana Varella, editora-chefe do Portal Drauzio Varella, ao contrário de muitos tópicos em que há disputas de visões, no caso do coronavírus há consensos estabelecidos: 1) isolamento diminui a curva da disseminação e 2) a situação do Brasil será grave.
Quando milhões de vidas estão em risco, não há diálogo com fanáticos. Foram muitas décadas de lutas para que chegássemos a um modelo de democracia que se pretende secular. A tolerância precisa ser zero.
Nessa mesma direção, a tão comentada saída da CNN Brasil da comentarista Gabriela Prioli não podia ter sido mais acertada. Não dá para opiniões embasadas em evidências debaterem com o achismo como se fosse um debate simétrico. Também foi fundamental a atitude do Twitter em deletar os tuítes de Bolsonaro que exibiam imagens de ele dando as mãos para ambulantes do Distrito Federal. Os representantes da rede social declararam que as publicações iam de encontro às orientações oficiais de saúde pública. O limite da liberdade de expressão é justamente quando ela fere o princípio da honra e da vida. Declarações genocidas precisam ser banidas.
Por outro lado, diante de toda essa tragédia, há de se celebrar que, como bem colocou o cientista político Steven Levitsky, a crise do coronavírus isolou os líderes autoritários. A gente pode sofrer com a repercussão e insanidade de Bolsonaro, mas existe um fato inegável: grande parte da população está confinada, e o presidente está sendo desautorizado por políticos e pela população. Sua legitimidade se corrói ainda mais entre setores que ainda estavam em cima do muro – é claro, que não estou falando do bolsonarista-raiz.
Hoje, à frente do país estão as instituições de pesquisa, as autoridades sanitárias, os meios de comunicação e a sociedade civil que se organiza para garantir a sobrevivência dos mais vulneráveis. Não são as caminhonetes em carretada que estão salvando o Brasil: são as instituições democráticas que, a duras penas, resistem e se engrandecem em momentos de crise.