Brasil
Subnotificação dificulta combate à covid-19 no Brasil
A pandemia do novo coronavírus, que já deixou mais de 2,9 mil infectados e 77 mortes no Brasil, segundo o Ministério da Saúde, vem impondo uma série de desafios às autoridades brasileiras, e especialistas apontam falhas no enfrentamento da doença.
Inicialmente, a contabilização de casos foi prejudicada pelo formulário disponibilizado pelo Ministério da Saúde para notificar suspeitas de covid-19, a doença respiratória causada pelo coronavírus Sars-Cov-2. No documento, havia apenas as opções “esteve fora do país” e “teve contato com alguém com sintomas”. Se a resposta fosse negativa para as duas perguntas, mesmo que a pessoa tivesse sintomas de covid-19, não se considerava o caso como suspeito.
Devido a essa lacuna, o primeiro paciente que morreu pela doença no país, em 16 de março, não constava no balanço de casos suspeitos. A confirmação da covid-19 veio apenas após o óbito. A vítima era um homem de 62 anos, morador de São Paulo e que também sofria de diabetes e hipertensão.
Após a primeira morte e a confirmação de ocorrência de transmissão local no país, o Ministério da Saúde mudou o protocolo, deixando de considerar caso suspeito apenas o de quem esteve fora do país e/ou teve contato com alguém com sintomas.
No último sábado, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo dos Reis, afirmou que qualquer brasileiro que apresentasse “síndrome gripal” seria considerado um possível infectado pelo coronavírus. O ministério também anunciou que, ao contrário do que era feito desde o início do surto da doença no Brasil, não iria mais divulgar os números dos casos suspeitos.
“Tal medida reflete a abordagem do país ante a maioria dos problemas de saúde pública: dar preferência ao tratamento, e não à prevenção. O principal motivo do crescimento exponencial no cenário atual é que a transmissão se dá mesmo antes do aparecimento dos sintomas. Identificar e tratar pacientes já contaminados e que estão em fase de expressar os sinais e sintomas clínicos da doença é algo que se torna insustentável a longo prazo, uma vez que novos pacientes continuarão a surgir”, afirma o especialista na área de saúde pública Fábio Teodoro de Souza, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
Falta de testes
Antes mesmo de ser constatado o problema com os formulários para notificar suspeitas da doença, outras falhas foram verificadas na condução do governo em relação a uma então possível crise ocasionada pela doença.
“A primeira contenção dos casos nos aeroportos já foi falha. Não era sequer perguntado aos que chegavam de viagem se estavam com febre. Em seguida, acabou prevalecendo um pragmatismo medíocre em relação aos testes: não tínhamos [kits para testes], portanto, não iríamos testar”, diz a doutora em saúde pública Lígia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O fato de o país ainda realizar poucos testes indica que a contaminação por coronavírus no Brasil deve estar subestimada. O próprio Ministério da Saúde, nesta quarta-feira, reconheceu que há uma subnotificação importante de casos graves no sistema, mas afirmou que a responsabilidade é dos hospitais e unidades de saúde que recebem esses pacientes.
Um levantamento do projeto Our World in Data, ligado à Universidade de Oxford e financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates, demonstrou que os países que mais testam pacientes para coronavírus são os que mais têm infectados. No Brasil, a estatística mostra apenas 13,7 testes por milhão de habitantes em meados de março.
A título de comparação, na mesma época, a Coreia do Sul havia testado 6.148 pessoas por milhão; a Alemanha, 2.023 por milhão, e o Reino Unido, 960 por milhão. Entre 59 países que informaram o número de testes por habitante, o Brasil ficou na 53ª posição. Segundo a pesquisa, os testes são cruciais para que se dê uma resposta adequada à pandemia.
Outro problema apontado pela pneumologista Margareth Dalcolmo, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz, seria a ocorrência de mortes por coronavírus na rede pública sem diagnóstico. Em entrevista ao jornal O Globo publicada, a especialista afirmou que isso ocorre porque sépsis e doenças pulmonares são muito comuns e não há testes para toda a rede.
A Fiocruz também aponta que houve uma explosão de internações de pessoas com insuficiência respiratória grave depois que o primeiro paciente com coronavírus foi detectado no país, no dia 25 de fevereiro. Na última semana de fevereiro, 662 pessoas foram internadas com doença respiratória aguda e apresentaram sintomas como febre, tosse, dor de garganta e dificuldade para respirar. As informações foram divulgadas pelo jornal Folha de S. Paulo.
No período entre 15 e 21 de março, as novas internações subiram para 2.250 pacientes em todo o país. Segundo a Folha, o número foi calculado com base em notificações oficiais enviadas por unidades de saúde, hospitais públicos e privados ao Ministério da Saúde. Segundo o pesquisador da Fiocruz Marcelo Ferreira da Costa Gomes, ouvido pelo jornal, o grande aumento nas internações pode ter sido ocasionado pela covid-19.
Discrepância entre dados
Outro ponto de atenção relacionado ao surto é que há discrepância entre os dados divulgados pelo Ministério da Saúde e pelas secretarias estaduais. No domingo, por exemplo, enquanto o Ministério da Saúde informava 50 confirmações da doença no Paraná, a secretaria de saúde do estado registrava 54. Isso ocorre devido à demora na tramitação oficial das informações cadastradas na plataforma federal pelos estados e explicita o desencontro de informações.
Para Souza, a discrepância afeta negativamente o manejo estadual e municipal da doença, uma vez que poderia interferir no envio de materiais médicos, de equipamentos de proteção pessoais e de profissionais de saúde por parte do governo federal.
“A notificação exata do número de casos confirmados, suspeitos e daqueles em observação mune o governo federal com dados importantes para as tomadas de decisão, não só do ponto de vista médico, como também legislativo e em relação às medidas trabalhistas e sociais do isolamento preventivo que devem ser observadas. Tal abordagem integral entre as diferentes esferas de poder é indispensável para mitigar a proliferação dos casos da doença”, afirma o especialista.
Já na opinião de André Luiz Marques, docente e pesquisador do Insper, as diferenças constatadas até então são pequenas, concentradas em alguns estados, e não seriam suficientes para impactar as definições centralizadas.
“De todas as graves preocupações que temos no momento, essa seria uma das menores. Mas temos que acompanhar ao longo do tempo para ver se essa ‘boca de jacaré’ aumentará ou não”, ressalta.
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