Brasil
Ação no STF quer usar reforma tributária para reduzir desigualdade no Brasil
Há dois consensos sobre o sistema tributário brasileiro. O primeiro é que se trata de um dos mais complexos do mundo, o que torna a vida das empresas difícil. O segundo é que ele cobra proporcionalmente mais dos pobres do que dos ricos.
Mexer nesse sistema é uma das prioridades do atual Congresso e do governo federal. Em 4 de março, foi instalada uma comissão de deputados e senadores para votar uma reforma tributária. O colegiado se baseia em dois projetos já apresentados, e um terceiro deve ser enviado em breve pelo governo ao Legislativo.
O foco atual da reforma no Congresso é simplificar: reduzir o número de tributos e uniformizar alíquotas — medida que seria benéfica para reduzir custos das empresas e que facilitaria a tarefa do governo de arrecadar.
Os projetos em discussão, porém, não alteram a distribuição da carga tributária entre pobres e ricos, ou seja, não mexem na regressividade — quando os pobres pagam, em relação à sua renda, mais tributos do que os ricos. Isso deixa distante a meta, estabelecida pela Constituição, de reduzir as desigualdades no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo.
A janela política aberta pelo debate da reforma tributária estimulou, no entanto, outras iniciativas e propostas para reduzir a regressividade do sistema. Uma delas é uma ação judicial proposta em 3 de março no Supremo Tribunal Federal (STF), que pede que a Corte reconheça que a regressividade do sistema tributário fere a Constituição e determine ao Congresso que a corrija.
A ação foi apresentada pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), que representa cerca de 30 mil auditores fiscais, a organização Oxfam Brasil e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos.
Partidos de oposição ao governo (PT, PCdoB, PDT, PSB, Psol e Rede) também apresentaram uma proposta alternativa de reforma tributária, que vai além da simplificação e estabelece novos tributos, como sobre grandes fortunas e heranças.
Além disso, dois pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, sugeriram uma solução intermediária: aproveitar a transição para um sistema tributário mais simples, em debate na comissão especial do Congresso, para ampliar a tributação da renda dos mais ricos, sem alterar a carga tributária total.
O sistema tributário brasileiro
A carga tributária no Brasil equivale hoje a cerca de 34% do Produto Interno Bruto (PIB), percentual acima da média dos países da América Latina e próximo à média da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organização que reúne 36 países democráticos.
Do montante arrecadado pelo governo, a maior parte — cerca de metade — vem de tributos indiretos, cobrados no consumo de bens ou serviços. Os impostos diretos, que incidem sobre a renda ou patrimônio, respondem por cerca de um quarto da carga.
Nos países da OCDE, ocorre o inverso: a maior parte da arrecadação vem de tributos diretos, sobre renda ou patrimônio, enquanto os indiretos, sobre bens e serviços, representam um terço do total, em média.
O modelo adotado pelo Brasil, fortemente baseado em tributos indiretos, prejudica os mais pobres. O valor do tributo pago na compra de um desodorante em uma farmácia, por exemplo, é o mesmo para quem ganha um salário mínimo ou para quem ganha 50 vezes isso — logo, é proporcionalmente maior para o mais pobre.
Mas esse não é o único obstáculo à redução das desigualdades. O tributo sobre a renda é pouco progressivo — há apenas quatro faixas e alíquota máxima de 27,5% — e não é cobrado na distribuição de lucros e dividendos. Por isso, os brasileiros mais ricos, sócios de empresas, não pagam imposto sobre a renda que recebem de suas companhias. E profissionais de alta renda têm um incentivo para abrir pessoas jurídicas e receberem por elas, pagando menos imposto.
O resultado desse sistema aparece no gráfico abaixo, que mostra quanto cada faixa da população gasta com tributos em relação à sua renda. Na faixa dos mais miseráveis, com renda de até 515 reais mensais, 28% da renda é gasta em tributos. Na dos mais ricos, que ganham mais de 46,5 mil reais mensais, apenas 7% da renda é destinada a tributos. Entre os dois extremos, o percentual oscila em torno dos 20%.
“Temos um sistema tributário que não cumpre sua função redistributiva. E que é ainda mais perverso nos dois extremos. O ideal seria que esse percentual subisse da esquerda para a direita, respeitando a capacidade contributiva de cada um”, afirma Grazielle David, consultora da Oxfam Brasil.
Motivos históricos
O economista Rodrigo Orair, pesquisador do Ipea e especialista em questões fiscais, afirma que há uma contradição entre os objetivos expressos na Constituição de 1988, que determina a construção de uma sociedade justa e solidária, comprometida com a redução das desigualdades sociais, e o atual sistema tributário brasileiro.
Na época da elaboração da Constituição, diz Orair, havia uma grande demanda por investimentos sociais, que haviam sido represados pelo governo militar, e de construção de um estado de bem estar social inspirado no modelo adotado por países europeus após a Segunda Guerra Mundial.
Contudo, ao mesmo tempo que o Brasil discutia sua Constituição, o mundo assistia a uma crescente influência da teoria econômica neoliberal, que defende que a política tributária não deve ter o objetivo de redistribuir renda e que ricos não devem pagar mais impostos que as outras classes.
O resultado, no Brasil, foi a elaboração de uma Constituição na qual os direitos sociais e a redução de desigualdade devem ser efetivados somente por meio de despesas sociais do Estado, e não pelo sistema de arrecadação de tributos.
Inspirado por medidas tomadas pelo então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, na década de 1980, o presidente José Sarney reduziu a alíquota máxima do imposto de renda, que era de 50% no regime militar, para 25%.
Mais à frente, no governo de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil deixou de cobrar imposto de renda sobre lucros e dividendos — entre os países da OCDE, apenas a Estônia não o cobra. Devido a essa isenção, o milésimo da população mais rico no Brasil, composto por 75 mil adultos, tem mais de 70% de sua renda isenta de impostos.
Segundo Orair, a concepção de que sistemas tributários não deveriam redistribuir renda começou a perder força nos anos 2010, entre outros motivos pela obra do economista francês Thomas Piketty, que radiografou o aumento da concentração de renda em diversos países nas últimas décadas. Esse novo debate, porém, ainda não resultou em medidas práticas para alterar o sistema tributário brasileiro.
Modelo inconstitucional
A ação proposta pela Fenafisco, Oxfam Brasil e Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, elaborada por Eloisa Machado, professora da FGV Direito SP, argumenta que, além de estabelecer que o país deve reduzir desigualdades, a Constituição afirma que o Estado deve levar em conta a riqueza de cada um ao definir quanto cada um pagará em impostos.
Por isso, diz Machado, o resultado do sistema tributário atual, no qual o pobre paga mais que o rico, é inconstitucional. Segundo ela, o Supremo deveria reconhecer esse cenário e determinar ao Legislativo que corrija a regressividade do sistema — algo que poderia ser feito pela comissão mista já instalada sobre o tema no Congresso.
“Sabemos que há uma pressão enorme do poder econômico para que o Legislativo não mexa na regressividade. Por isso, queremos que o Supremo coloque essa meta constitucional. A ação não pede que o Tribunal crie tributos ou altere o sistema, isso é função do Legislativo. Mas é sim papel do Supremo avaliar o resultado final do sistema tributário e declarar se ele fere a Constituição”, diz Machado. A ação está sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia.
“O Estado tributa mal, onera mais os mais pobres, concede uma série de benefícios aos mais ricos, e depois promove políticas públicas para reverter essa desigualdade que ele mesmo criou. Queremos que o Estado seja mais coerente”, diz a professora.
Orair, do Ipea, avalia que a ação judicial é positiva ao provocar o Supremo a dizer que uma reforma tributária deveria implementar princípios constitucionais, mas ele pondera que a iniciativa se excede ao pedir que o Legislativo faça isso em um prazo de seis meses.
A reforma no Congresso
A comissão da reforma tributária no Congresso discute duas propostas de emenda à Constituição (PEC), de números 45 e 110. Ambas propõem a unificação de diversos tributos sobre consumo e serviços em um único, e não trazem medidas estruturais para alterar a regressividade do sistema.
A PEC 45, por exemplo, propõe substituir cinco tributos (COFINS, PIS, IPI, ICMS e ISS) por um novo, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), ao longo de um prazo de transição de no mínimo dez anos. Nesse período, os tributos antigos teriam sua alíquota gradualmente reduzida, e a do novo seria aumentada de forma calibrada para que o resultado final não alterasse a carga tributária total.
Um argumento comum entre congressistas favoráveis aos textos discutidos na comissão do Congresso é que medidas para alterar a regressividade do sistema, como cobrar imposto de renda sobre lucros e dividendos ou alterar alíquotas, poderiam ser aprovadas posteriormente, sem a necessidade de alterar a Constituição.
Mas, para Orair, que é favorável à PEC 45, “adotar um modelo mais moderno na tributação de bens e serviços não é incompatível com a agenda da progressividade”.
Em estudo publicado em janeiro pelo Ipea, em parceria com o também pesquisador do órgão Sérgio Gobetti, Orair propõe que, no período de transição, a definição da alíquota do IBS leve em conta não somente as perdas pela redução da alíquota dos tributos que serão extintos, mas também eventuais ganhos obtidos por mudanças no imposto de renda, em especial a cobrança de imposto sobre lucros e dividendos.
Segundo sua projeção, ao final da transição proposta pela PEC 45, o IBS deve ter uma alíquota de 27%, uma das mais altas do mundo para tributos desse tipo. Se essa transição levasse em conta também a adoção de mais tributos sobre a renda, como sobre lucros e dividendos, a alíquota final do IBS seria menor.
“Assim, se acertam dois coelhos com uma cajadada só. De um lado, cria-se um imposto moderno sobre bens e consumo. De outro, também se avança na agenda de progressividade, sem aumentar a carga tributária total”, diz.
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