Variedades
Sob a luz dos Velosos
Caetano surge encabulado à sede do Spotify pelo atraso de pouco mais de uma hora para a entrevista. “A culpa foi minha, desculpe.” Antes que o gravador seja ligado, percebe assessores pedindo ao repórter que nenhuma questão seja abordada além do projeto Ofertório, que será lançado em CD e DVD, disponível no Spotify a partir desta sexta-feira, 25, e que volta aos palcos nesta sexta e sábado, 26, no Espaço das Américas. O assessor se afasta e Caetano fala discreto. “Pode perguntar o que você quiser.”
Você sente a passagem do tempo mais presente agora que está no palco com Moreno, Tom e Zeca? Onde ela fica mais visível?
Eu percebo muito, o tempo todo. De Moreno, 44 anos, para Zeca, 25, são quase 20 anos. Eu tive com Moreno, 20 anos, uma experiência de nova geração e com Zeca uma experiência de geração que é nova para Moreno. E Tom é mais perto de Zeca, mas mesmo assim são cinco anos de diferença. E hoje em dia cinco anos pesam.
Quando sua geração começou, havia uma inquietação, um engajamento. Hoje parece haver uma desesperança, uma melancolia. O próprio conceito da canção nas mãos de um compositor jovem parece deixá-la tão mais triste…
Bem, nós somos brasileiros sempre tivemos a tradição de canções de amores falidos, que não dão certo, ao contrário das canções norte-americanas em que o amor é bem-sucedido. Havia uma tradição de tristeza. Eu me lembro do brasileiro se considerar triste quando eu era criança. Eu, lá no interior da Bahia, ouvia os mais velhos citarem coisas que fui ver depois que eram de Paulo Prado, que falava das três raças tristes.
Quando ficamos alegres?
O brasileiro alegre começou a nascer com Vinicius de Moraes, e isso ficou explícito nas cenas de futebol coloridas do Canal 100, que uniu futebol e carnaval pela primeira vez. Não havia isso. As canções da bossa nova começaram a ser as primeiras com histórias de amor levadas a sério que eram bem-sucedidas. Você e Eu, Só em teus Braços, Brigas Nunca Mais. E a introdução a tudo isso foi Chega de Saudade. Apareceu assim um esboço de Brasil otimista da canção popular que não foi acompanhada pelos vizinhos hispânicos. A ideia do brasileiro alegre, para mim, é mais ou menos nova.
E então, ficamos tristes de novo…
Houve um momento em que apareceu o Los Hermanos, que não por acaso tem o nome em espanhol, com canções de rock tristes. Havia já outros grupos melancólicos, mas o fato é que a temática da tristeza deixou de ser proibitiva. Houve um momento nos anos 70 em que muitas das canções que estouraram, de Roberto Carlos por exemplo, traziam uma euforia sexual amorosa. Em muitas de Roberto, de Simone, coisas que eu mesmo fiz, predominava quase que um antídoto contra aquelas décadas de tristeza anteriores à bossa nova.
Gil fez há pouco o que você está fazendo, levando a família ao palco para um show (Refavela). Algo ali e aqui faz pensar que vocês conseguiram deixar uma família unida, com filhos que gostam de vocês, um caso relativamente raro no meio artístico. São muitas histórias de famílias rompidas por heranças, direitos autorais… Bem, João Gilberto deve estar sofrendo por ver seus filhos em pé de guerra….
Olha, eu tenho visto João Gilberto nos jornais e me sinto mal porque é muito difícil vocês da imprensa poderem acompanhar o que é João Gilberto. João é muito denso, profundo, misterioso. Do que eu li na imprensa brasileira que dizia realmente tudo o que pode ser dito sobre João foram as respostas que o Gil deu a você naquela entrevista do Estado (publicada em 29 de abril). O Gilberto Gil falando de João Gilberto salvou a imprensa brasileira.
O que levou João a escolher pelo isolamento?
Isso é ele! Ah, se eu pudesse ler aquilo que Gil respondeu a você eu iria repetir ipsis litteris. Nada é mais profundo do que aquilo. (Gil disse: “Eu sinto uma consternação enorme, porque sei da verdade que é essa dimensão reclusa do João, o quanto isso faz parte de uma escolha, de um modo de vida. Ele está lá para se preservar e preservar o mundo ao seu redor. João não quer atrapalhar o mundo! Para ele, qualquer acréscimo de atrito, de ruído, já pode ser além da dose. João é um homem de quietude, de muita meditação”.)
Você acaba de abrir a Virada Cultural de São Paulo em um trio elétrico, a convite da Prefeitura. Naquela mesma noite, desabrigados do Largo do Paiçandu se perguntavam porque para eles, que estavam ali acampados com famílias havia 17 dias desde a incêndio no prédio em que moravam, não havia sequer banheiros químicos. Não teria sido mais condizente você, que tem se engajado em várias questões sociais, dizer não à Virada?
Você diz eu ter uma atitude de recusar a festa como um boicote à África do Sul ou Israel? Bem, no caso da Virada, eu acabei medindo a importância do bloco Tarado Ni Você, o crescimento do carnaval de rua de São Paulo, o carinho que eles têm por mim, e atendi ao convite. Essa ligação (dos desabrigados) não estava nem na minha cabeça… Agora, o tema está aí e deve ser discutido, e é um tema central na campanha de Guilherme Boulos (PSOL), em sua campanha à Presidência.
O fato de São Paulo estar sob o governo de um partido com o qual você não se mostra alinhado, o PSDB, não seria o bastante para sua negativa?
Votei em Fernando Henrique Cardoso (PSDB) para presidente da República e não me arrependo.
E depois votou em Lula.
Votei em Lula para presidente da República e não me arrependo.
E agora? Vai votar em quem?
Ciro Gomes.
O que te dá medo?
Medo era um vício meu de criança, adolescência e juventude. Mas um dos maiores conseguimentos da minha vida foi vencer o medo permanente. Ele sempre foi intenso, eu era viciado em medo. Isso está mais ou menos superado. Hoje não vivo mais o sentimento do medo, mas tenho medos naturais, de que algo de mau aconteça a mim ou às pessoas que eu amo, como meus filhos.
Em que momento esse show com seus filhos não é um show como os outros que você já fez?
Em nenhum momento é como o meu ou como os que vejo entre pais e filhos. O nosso, para mim, como são meus filhos, tem outra luz. E eu, felizmente, descobri que essa luz que nós vemos no palco – mesmo sabendo que os pais gostam mais dos filhos do que os filhos gostam dos pais – é percebida inesperadamente por pessoas da plateia. Algumas voltaram várias vezes para reafirmar o encontro com esse tipo de luz. Acho que é um tipo de luz que é nossa, que é da nossa família.
Seu filho Zeca disse algo que pareceu bonito na coletiva de imprensa de terça. Ao falar das percepções que tinha sobre o pai, afirmou que você não é a pessoa que ele quer ser, mas a pessoa da qual ele quer sair para ser qualquer pessoa.
(Caetano fica de olhos marejados). Pois é, é isso, é lindo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Autor: Julio Maria
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