Variedades

’10:04′, um encontro do pop com a teoria

03/04/2018

A escrita do americano Ben Lerner provoca constantes sobressaltos no leitor. Ao partir do pressuposto de que é muito tênue a linha divisória entre realidade e ficção, ele é capaz de tornar verídica uma cena clássica do cinema. Esse é um dos destaques de 10:04, seu segundo romance, lançado agora pela editora Rocco.

O título faz uma alusão à cena capital de De Volta Para o Futuro, filme cult dos anos 1980: o momento em que um raio atinge o relógio da torre, às 10:04 de uma noite de 1955, e permite a volta do personagem de Michael J. Fox do passado. Essa é apenas uma fração, um ingrediente do saboroso caldeirão de referências montado por Lerner que, se em seu primeiro romance, Estação Atocha (Rádio Londres), usa o hedonismo como provocação à passividade de hoje, em 10:04 ele joga com palavras e conceitos, embalados por um humor imperdoável e uma escrita por vezes metafísica, o que remete às suas origens como poeta.

No novo romance, Lerner brinca com o mix real/ficcional ao apresentar um escritor nascido em Topeka, no estado de Kansas, e radicado em Nova York, onde lançou um livro “inesperadamente elogiado” – é exatamente a biografia do próprio Lerner, alçado ao sucesso com Estação Atocha. Mas, em meio aos elogios, o personagem do romance descobre uma “dilatação ainda assintomática mas potencialmente aneurismática” em sua aorta, o que exige um extremo cuidado até se constatar a necessidade de uma cirurgia.

Diante da ameaça da finitude, ele assume diversas funções espantosas, bem descritas pelo release de divulgação de 10:04: “decifrar pinturas em paredes de consultórios médicos, cozinhar para manifestantes do Occupy Wall Street, cumprir a estranhamente complicada tarefa de coletar seu próprio sêmen (para conceber um filho com uma amiga), preparar-se para a chegada de uma tempestade apocalíptica, redigir um livro sobre brontossauros a quatro mãos com um menino de oito anos, e almoçar filhotes de polvos massageados até a morte em restaurantes superfaturados na companhia de sua agente, que lhe dita os próximos passos: transformar em romance um conto seu publicado na revista New Yorker, algo que pode proporcionar um ‘polpudo adiantamento de seis dígitos’.”

Para Ben Lerner, um romance não deve apenas descrever uma experiência, mas se transformar em um objeto a ser experimentado.

As referências visuais são de extrema importância na literatura de Ben Lerner. Em 10:04, por exemplo, ele reproduz na página 17, a título de comparação, um detalhe do quadro Joana D’Arc, pintado por Jules Bastien-Lepage em 1879, e um fotograma do longa De Volta Para o Futuro. Em ambos, aparecem mãos com traços indefinidos – como se estivessem inacabadas (no caso da pintura) ou desaparecendo (filme), o que estabelece um curioso jogo de ausência e presença. Ou mesmo do confronto realidade/ficção.

Poeta de formação, Lerner conta que seus dois romances nasceram a partir de uma inquietação ao pensar sobre algumas ideias que o preocupavam, tanto em poemas quanto em refletir sobre a poesia, considerações que acabaram moldando o caráter de seus diferentes personagens e o rumo de sua escrita.

“Tenho pensado muito no romance como uma espécie de curadoria, uma forma de você encenar encontros com obras de arte. Então, menos do que uma poesia usurpada, o romance seria mais uma estrutura para dramatizar um certo tipo de envolvimento com a poesia”, disse ele, em entrevista ao site The Quietus.

Lerner reflete ainda sobre as delimitações impostas à poesia e à prosa. “Algo que acontece quando se é poeta é que você se interessa mais por padrão do que por enredo; você se interessa em como um padrão de eventos e outro de linguagem se relacionam, em oposição às grandes transformações dramáticas. Se você escreve um romance em que ninguém explode ou se transforma em um bruxo, então seu livro é criticado por não ter enredo, mas muitos dos meus romances favoritos são justamente ‘sem graça’ por causa desse padrão.”

Dono de apurado senso ético e estético, Lerner respondeu por e-mail as seguintes perguntas.

Depois de ‘Estação Atocha’ e ’10:04′, uma dúvida: quão permeável é a fronteira entre fato e ficção?

Um dos aspectos em que estou interessado é como o fato se torna ficção e como a ficção se torna fato – como as histórias que narramos são vividas e como nossa vida muda à medida que essas histórias são corrigidas ou se desfazem sob a pressão do presente. De modo que a fronteira é muito permeável. E uma das coisas que gosto de enfatizar na minha obra é como a fronteira entre fato e ficção é sempre irregular.

Qual é a importância das imagens que usa em seu trabalho?

Sempre se afirma que a cultura contemporânea é dominada pela imagem, pelo espetáculo. E há muita verdade nisso. Mas acho que uma das coisas que a ficção faz é mostrar como as imagens estão sempre sujeitas a uma nova definição, como a linguagem estrutura e reestrutura o que vemos. Muitos experimentos artísticos importantes são experimentos que envolvem ‘como’ ver e ouvir. Quero que você veja um quadro em branco como uma pintura; quero que você ouça uma distorção como música, etc. ‘Como’ era a palavra predileta de Wallace Stevens – “os subterfúgios intrincados do ‘como'” – como a imaginação pode transformar o meramente real em algo mais.

’10:04′ tem como epígrafe uma história hassídica sobre como ‘o mundo futuro’ será igual a este, apenas um pouco diferente. Quais foram suas reflexões sobre esta parábola?

Bem, a parábola é inesgotável. Mas eu diria que uma das coisas que ela sugere é como as possibilidades de outro mundo são indissociáveis deste nosso. Você não tem de imaginar um apocalipse. Mesmo nas ruínas causadas pelo capitalismo existem pequenos vestígios de um outro mundo. Quando você come com seus amigos, por exemplo.

Há um livro sendo construído dentro deste livro – pelo menos um acordo ficcional com um segundo romance da parte do narrador.

Acho que uma obra de arte às vezes narra sua própria construção de uma maneira que intensifica a experiência da leitura. Alguns escritores gostam que o leitor esqueça que está lendo. Eu prefiro que os leitores sintam como se participassem da construção do significado. Isto faz com que sintam como o significado deve sempre ser construído a partir dos materiais contingentes da vida.

Um personagem inesperado de arte visual em ’10:04′ é o ‘The Clock’, de Christian Marclay. Para mim, o efeito mais estranho desse relógio é que as referências de tempo se tornam ficcionais. Parei de notar que estavam me dizendo exatamente a hora atual. E quanto a você?

Talvez minha experiência tenha sido similar no sentido de que uma coisa que me deixou interessado é como crio histórias a partir de minutos diferentes, mesmo tendo sido selecionadas menos pela sua coerência narrativa e mais pelo simples fato de que descreviam o tempo. A gente sente o profundo desejo humano de integrar os fragmentos numa história. A força da criação narrativa.

Como explica seu interesse em escrever em tantas mídias diferentes e sobre elas?

Um meio de comunicação é um laboratório. É ótimo ter mais de um. E ver o que é apropriado e o que não funciona.

10:04
Autor: Ben Lerner
Trad.: Maira Parula
Editora: Rocco(272 págs.; R$ 39,90; R$ 25,90 o e-book)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Ubiratan Brasil
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