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As águas de 1949

22/03/2015
As águas de 1949

A chuva intensa caída logo após o carnaval fez-me retornar à infância. Eu tinha nove anos, menino, criado livre, leve e solto na praia da Avenida da Paz, fiquei apavorado com relâmpagos, trovoadas e muita chuva durante cinco dias. Alegrava-me ao lembrar dos caranguejos saindo de seus buracos assustados com trovões, eu havia colocado algumas “ratoeiras” feita de lata de óleo nas tocas de goiamuns às margens, no mangue, do Riacho Salgadinho, deviam ter caranguejos presos, pensava. Durante a noite aumentou o temporal diluviano. O riacho transbordou, água entrando em nossas casas, enchente na Rua Silvério Jorge, onde eu morava. As grandes chuvas de maio estavam acontecendo no final de abril.
Uma enxurrada, um vagalhão desceu veloz o bairro do Tabuleiro, passando pelas casas chiques do Farol, num barulho aterrador de água em movimento. A aluvião avançou como se fosse uma onda desgovernada atropelando o que encontrava pela frente, carros, carroças, derrubou árvores. Quando a enxurrada se intensificou na descida da Rua Barão de Anadia, bairro de Mangabeiras, deu-se um forte estrondo, rompeu um enorme bloco de barro, a barreira desprendida caiu por trás das casas daquela rua, mais de 20 residências soterradas, mais de 50 mortos.
No leito do vale do Riacho Reginaldo–Salgadinho a correnteza cada vez mais volumosa, insustentável, levava o que havia em seu corredor. Na foz, onde o riacho deságua na Avenida da Paz, o vagalhão chegou tão forte que partiu ao meio a ponte de concreto da avenida. A ponte desmoronou, foi arrastada em dois blocos à beira-mar.
Onde havia a ponte sobre o Salgadinho, ficaram apenas trilhos dos velhos bondes pregados em seus dormentes. O bonde era o transporte urbano mais usado naquela época.
Ao amanhecer, avaliaram os estragos da catástrofe, volume de chuva nunca visto. Curiosos, usuários do bonde para o trabalho, ficaram estarrecidos, contemplando as consequências da água violenta naquela manhã.
A Rádio Difusora dava detalhes da catástrofe, a enxurrada havia derrubado a ponte da Avenida da Paz. Depois do café da manhã, fui em busca de minhas “ratoeiras”, não encontrei uma sequer, alguns locais estavam submersos. Retornei à praia, entrei no Hotel Atlântico, de uma privilegiada posição, na varanda, fiquei contemplando emocionado o vão da ponte apenas com os dormentes do bonde balançando.
Dois enormes blocos de concretos, dois pedaços de ponte levados pela correnteza, como se fossem rochas naturais jaziam à beira mar molhados pelas marolas. Fiquei encantado com os trilhos pregados no dormente, resistindo numa linha curva, o que restou da tragédia.
Esses mesmos trilhos serviram como base, construíram uma ponte de pedestre provisória para usuários dos bondes atravessarem fazendo baldeação da linha Vergel do Lago – Ponta da Terra e vice versa. Os bondes paravam na cabeceira da ponte, o passageiro recebia um tíquete, atravessava a ponte improvisada, tomava outro bonde que o levava ao destino. Carros, caminhões e ônibus seguiam seu destino de Ponta da Terra para o Centro, arrodeando via bairro do Poço.
A meninada inocente e traquina, gostou da tragédia, apareceu mais divertimento. Todo dia nós acompanhávamos as obras de engenharia, a construção da nova ponte do Salgadinho. Da cabeceira descíamos, ficávamos embaixo da ponte estreita de pedestre, em local estratégico, apreciando o desfile das calcinhas das mulheres que atravessavam distraídas. Algumas vezes, espertos maridos perceberam, nos xingavam, um delegado ciumento tirou o revólver, deu tiros para o alto, nos dispersamos rápidos, como só crianças ou soldados sabem fazer.
Com a construção de uma ponte de madeira provisória na Rua Silvério Jorge, o trânsito voltou ao normal na região da orla. Minha rua ficou intensa, acabou-se o bucolismo. A nova ponte de madeira terminou a tranquilidade da rua, entretanto, continuou o divertimento de apreciar as calcinhas das mulheres até terminar a construção da nova ponte. A obra durou cerca de um ano, a ponte de concreto foi inaugurada com grande estardalhaço. Quatro anos depois, Luzia, embaixo dessa nova ponte, tirou minha inocência às sete da noite.