Geral
Mulheres revelam o drama da Paixão
Nada se via naquela madrugada. Mas a mulher que estava ali para rezar junto ao túmulo reconhece e abraça Jesus. Ela o identifica pela voz, pelo tom em que pronunciava seu nome: “Maria!”.
Essa mulher que envolve Jesus com os braços aparece nas interpretações da Bíblia como a pecadora símbolo da história cristã. As escrituras sugerem ser ela, Maria Madalena, a prostituta que lavou os pés de Jesus com perfume e lágrimas, secando-os depois com o próprio cabelo.
Ela O encontra vivo. É domingo de páscoa, dia de ressurreição. Cristo havia sido crucificado poucas horas antes. “Não me segure”, diz Jesus, afastando-a. “Ainda não voltei ao Pai”.
Maria Madalena era uma das seis mulheres de Cristo. Quase sempre silenciosas nos textos do Evangelho, essas apóstolas (palavra que só parece aceitar a versão masculina) o acompanharam por toda a parte. Observadas com atenção, nas esparsas passagens bíblicas em que aparecem e em alguns escritos profanos, elas contam a história de um Jesus diferente. Falam de um Cristo mais humano.
Esse evangelho feminino, que existe nas entrelinhas dos relatos de Marcos, Mateus, Lucas e João, não fala de Cristo como liderança política nem chama atenção para Jesus com poderem sobrenaturais, capaz de libertar os judeus do domínio dos romanos. Descreve um homem compreensivo com os “pecadores”, afável com prostitutas e adulteras. Revela, sobretudo, um Jesus sensível aos sofrimentos dos excluídos, entre eles as mulheres.
É para uma mulher que Jesus primeiro se revela. Na beira do poço de Jericó, uma samaritana, moradora de uma das regiões da palestina, encontra-se com Jesus.
Ela era execrada pelo fato de ter tido seis maridos diferente. Jesus conhecia a reputação da mulher, mas insistiu em puxar conversa com ela, pediu um pouco de água. Acanhada de início, a mulher acaba contando sua vida, esperando uma reprimenda, que não vem. Ao contrário, Jesus confia a ela seu maior segredo. “Eu sou o Messias (o salvador do povo Judeu, esperado por todos na época)”, revela pela primeira vez.
Também, nos milagres pedidos por essas mulheres percebe-se um Cristo diferente. Os feitos extraordinários que elas encomendam a Cristo têm uma dimensão mundana muito forte, além da simples prova do poder.
No Evangelho segundo as mulheres, os milagres servem para aliviar preocupações práticas, sofrimentos dos sentidos. Caso da falta de vinho durante as bodas de um casamento realizado em Caná da Galiléia (Região próxima ao Líbano), do qual Jesus participava com seus discípulos.
O episódio, narrado no novo testamento por João, mostra Maria de Nazaré, a mãe de Cristo, pedindo ao filho uma providência para evitar um vexame aos noivos. Naquele tempo, o casamento judaico era uma grande celebração, brindada enquanto houvesse vinho. Como a bebida acabava, Maria temia que a festa terminasse antes da hora, envergonhando as famílias dos recém casados. Ela faz ver então ao filho a situação dos noivos. Jesus reluta em atendê-la ou talvez em compreender o significado desse sofrimento, tão terreno, tão concreto. Mas faz a vontade da mãe e transforma seis potes de pedra com cem litros de água cada um em vinho da melhor qualidade. E a festa segue.
As discípulas de Jesus, aliás, nunca deixaram de se ocupar dos aspectos práticos de sua peregrinação pela terra. Nas jornadas de pregação realizadas por ele e pelos apóstolos na Judéia e na Galiléia (hoje equivalentes a região da Palestina, incluindo Israel e partes da Jordânia e do Líbano), Jesus contava sempre com o apoio logístico dessas mulheres.
As seis cozinhavam os peixes e cordeiros, ganhos de presente. Também lavavam e depois penteavam as túnicas pardas feitas de lã de ovelha, usadas pelos homens e presas a cintura deles por cordas de cânhamo, trançadas por elas.
Com o dinheiro dos maridos, as mais ricas do grupo serviam a Jesus ajudando a custear os deslocamentos e as pequenas despesas do grupo de andarilhos. Joana, por exemplo, era casada com um influente palestino de nome Cusa – que pertencia a corte do Rei Herodes Ântipas. O filho do casal foi salvo da morte por Cristo, em um milagre realizado em Cafarnaum (região montanhosa da Palestina, próximo a fronteira com o Líbano). Depois disso, os pais resolveram se juntar ao grupo de seguidores de Jesus.
Salomé tinha marido pescador de nome Zebedeu. Mesmo assim, era considerada remediada diante da situação de pobreza dos demais. A história contada pelo apóstolo Marcos aponta como sinal dessa riqueza relativa de Salomé o fato de Zebedeu ter empregados trabalhando para ele em seu barco de pesca.
Ricas ou pobres, as discípulas de Jesus eram mulheres incomuns. Mas nenhuma delas mais do que Maria Madalena e Suzana. Viviam totalmente independentes e nômades, num tempo de mulheres objeto – por lei, passavam da posse do pai, para a posse do marido e, por último, do filho mais velho. Embora a bíblia não toque no assunto, a maior parte dos teólogos atribui à viuvez e à falta de filhos, a liberdade desfrutada por essas duas mulheres.
Do núcleo feminino, eram as únicas sem marido ou qualquer relação familiar com Cristo ou com os apóstolos. As duas Marias do grupo tinham parentes entre os discípulos. Maria de Nazaré, mãe de Jesus, estava viúva e, portanto, sob os cuidados de seu filho mais velho, o próprio messias. A outra Maria era mãe do apóstolo Tiago (conhecido como o menor), além de ser tia de Jesus. Salomé também tinha dois filhos entre os discípulos, Tiago (conhecido pelo apelido de maior, para diferenciá-lo do outro), e João. Joana era casada e, portanto devia satisfações ao marido.
Evangelho feminino
Maria Madalena e Susana viviam só para servir Jesus. Depois do primeiro encontro com Cristo – no qual, segundo o evangelho de Lucas teriam sido curadas da presença de demônios – não separaram mais dele. Sem nunca se casar, Jesus testemunhou a beleza e o espírito feminino na convivência com essas mulheres. Maria de Nazaré, a mãe, foi a primeira mulher e a primeira de suas seguidoras. Aos 15 anos, a menina-moça de pele clara, cabelos compridos, e corpo ainda em formação, foi entregue em casamento a José, um carpinteiro rude e bem mais velho, também de Nazaré (cidade da região montanhosa da Palestina). Uma união de interesses, não de amor, como convinha na época. Maria juntou o seu destino ao de José porque o pai dele (sem nome citado na bíblia) havia concluído junto com o pai dela (também oculto) que esse seria o melhor casamento possível para os dois, do ponto de vista material.
Foi essa adolescente, Maria, dona de uma beleza juvenil, cumpridora de seu papel na lei judaica (obediência ao marido e cuidado com a casa e com os filhos) que trouxe Jesus ao mundo e o iniciou no conhecimento da Bíblia. Aos poucos, o filho aprendiz da mãe passou a ser professor. Os costumes de então não permitiram outro desfecho para essa história. Nas reuniões festivas (religiosas ou não) do povo de Israel, as mulheres não eram sequer permitidas dentro do Templo. Nessas celebrações havia um átrio central reservado aos homens, outros para os meninos menores de 12 anos, considerados não iniciados nas tradições, e outro ainda para as mulheres – sempre o mais distante do altar. Essa foi a formação recebida pelo Cristo.
Talvez isso explique, em partes, o papel ambíguo das discípulas de Jesus, tão presentes e invisíveis ao mesmo tempo. No grupo dos apóstolos, as mulheres ajudavam na organização e no financiamento das peregrinações, mas não participavam das discussões do grupo e nem falavam em público. Elas, porém, com seus exemplos, ajudaram a propagar a fé cristã. A devoção das mulheres pelo Cristo foi mais forte no caminho percorrido por Jesus entre a condenação por Pilatos e a morte na Cruz. Escondidas em funções coadjuvantes durante todo o evangelho contado pelos homens, elas ganham os holofotes na narração do sofrimento de Cristo. As discípulas de Jesus o seguiram até a crucificação. Choraram por ele como se sentissem dor. Os apóstolos correram a se esconder. Com medo da perseguição política, não estavam presentes ao pé da cruz, coma exceção de João. Ali, o Cristo se despediu da terra, diante da imagem da mesma mulher, sua mãe, Maria de Nazaré, agora envelhecida, de cabelos brancos e carnes flácidas de tantos filhos trazidos ao mundo. A Bíblia não permite precisar quantos descendentes, Maria e seu marido José deixaram. Talvez porque o Evangelho não se interesse pelos irmãos de Cristo, homens e mulheres comuns, concebidos como todos os outros mortais, e não nascidos de uma virgem como Jesus.
Depois da morte de Cristo, na sexta-feira, as discípulas não descansaram. Ainda havia providências práticas a serem tomadas para dar como encerrada a peregrinação de Jesus. Com a ajuda de José de Arimatéia – homem rico morador de Jerusalém – que teve pena do sofrimento de Cristo, elas retiraram o corpo da cruz e o prepararam para a sepultura.
Os cabelos negros de Maria Madalena roçam o corpo inerte de Cristo. Com Joana, Susana, Salomé, Maria de Nazaré e Maria mãe de Tiago, Madalena cumpre o último ritual sagrado dos judeus. Juntas mais uma vez, as discípulas banham Jesus com especiarias e perfumes para o repouso final. É essa mesma Madalena que prepara o corpo de Cristo para a sepultura, que o encontra vivo, no domingo de Páscoa. Depois de ressuscitar, ele aparece, chama por ela, “Maria!”, recebe seu abraço e depois a afasta.
As discípulas de Cristo continuaram vivendo com os apóstolos e servindo-os. Não se tem registro do local de morte ou sepultura de nenhuma delas. Alguns teólogos, no entanto, acreditam que Maria de Nazaré esteja enterrada embaixo da Igreja da Dormição, em Jerusalém.
Na tradição Cristã que se seguiu, as mulheres de Jesus voltaram ao esquecimento do qual Cristo as tinha tirado. Os apóstolos, pelo contrário, foram todos transformados em santos pela Igreja Católica.
Fora Maria Madalena e Maria de Nazaré, as outras não possuem nem festa e nem título de santa. Escreveram um evangelho de exemplos e poucas palavras.
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