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O amor no tempo do bonde
No tempo do bonde os três eram amigos inseparáveis, corriam pela Avenida da Paz, brincavam na areia da praia, mergulhavam no mar azul-esverdeado. Tomavam bigu nos estribos do bonde, quando aparecia o cobrador, pulavam. Roubavam coco, manga, sapoti, pinha, melancia, nos sítios da vizinhança. Venâncio o mais velho, 13 anos, pai advogado e fazendeiro, morador na Avenida da Paz. Antônio filho do capataz da fazenda, 12 anos, moreno dos olhos verdes, descendência da miscigenação dos holandeses com caboclos nordestinos, morava nos fundos da casa do patrão, estudava em escola pública. Clarissa, meiga e traquina menina, vizinha de Venâncio; formavam o trio encantador nas brincadeiras infantis na praia e nas férias na fazenda. Clarissa, a convidada, gostava de montar cavalos, trotava, cavalgava pelos morros da fazenda na cidade histórica de Marechal Deodoro, antiga Alagoa do Sul. Nem Venâncio, nem Antônio escondiam a paixão pela amiga, ela brincava, “vou me casar com os dois, vou ter dois maridos”.
O destino os separou, o pai de Clarissa, coronel do Exército foi transferido para o Rio de Janeiro. Antônio deixou os estudos, tornou-se ajudante de capataz na fazenda. Venâncio terminou o científico fez vestibular, cursou cinco anos a Faculdade de Medicina da Bahia. Ao se tornar médico, montou clínica em Maceió, bom profissional, enriqueceu, herdou a fazenda do pai, intelectual e boêmio fez de Antônio seu motorista, acompanhante das farras, das mulheres, tomava conta do patrão, a diferença de classe social fez a diferença na amizade adulta, era patrão e empregado, embora se gostassem muito, Antônio chamava o amigo de Dr. Venâncio, esse nunca contestou.
Perto de completar 30 anos Venâncio foi em férias ao Rio de Janeiro, tomava um chope no Alkazar em Copacabana de repente viu uma figura passar, teve certeza, saiu correndo gritando, “Clarissa, Clarissa”. Uma bela morena se voltou, o reconheceu, abraço apertado, felizes, reencontro que durou até o final de sua vida. Clarissa, separada, tinha uma filha, nada impediu que no dia 20 de junho de 1970, véspera do Brasil ser tricampeão mundial de futebol, houvesse o repentino casamento. Depois de comemorarem o triunfo do Brasil, foram morar em Maceió. Uma nova vida esperava Clarissa, casa à beira da praia, conforto, muitas lembranças da infância querida, entretanto, a maior surpresa ela teve no aeroporto ao avistar Antônio, antes de pegar as malas, cumprimentou-a, “como vai, Dona Clarissa?”. Ela não se conteve deu-lhe um abraço, recriminando,”que história é essa de Dona Clarissa?”, só quando ele levou as malas para o carro, ficou sabendo, Antônio era motorista de Venâncio. Clarissa proibiu-o de chamar-lhe de Dona, ele desobedeceu.
Assim se passaram 35 anos, o casal teve três filhos, vida financeira equilibrada e tranquila, até que um dia Venâncio tomando banho escorregou, caiu com a cabeça na quina do banheiro, entrou em coma, 30 dias depois, morreu. Nunca se viu tanta gente no Parque das Flores, Dr. Venâncio muito querido na cidade, muito choro, muitas lágrimas. O fiel escudeiro, Antônio, sofreu ao ver o amigo partir. Depois da missa de sétimo dia informou à família que havia acertado novo emprego, motorista de transportadora. Ao saber da decisão de Antônio, Clarissa procurou-o, não admitia ele partir, queria saber o por quê de estar fugindo. Antônio a encarou com seus olhos verdes, não pôde mentir, “porque eu amo e sempre amei você Clarissa desde os tempos de menino, desde o tempo do bonde, nunca tirei você de minha cabeça nem de meu coração”. Clarissa entre surpresa e emocionada, conseguiu apenas perguntar, “Por isso você nunca casou, Antônio ?” – “Nunca casei, nunca amarei outra mulher”.
Fazem cinco anos da morte de Venâncio, Clarissa enfrentou a viuvez com garra e altivez, Antônio ficou, o amor do motorista é discreto, elegante e respeitoso. Existe um ar de felicidade explícita na viúva, Antônio à noite, na cama torna-se fera em busca do tempo perdido, beija a boca da patroa sussurrando, “minha Clara, minha Clarissa, minha vida”.
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