Geral

Hermeto Pascoal

02/07/2012

  A característica principal do mês de junho, sobretudo nas cidades interioranas do nordeste brasileiro, é a musicalidade dos mais variados sons. Ao espocar dos foguetes se misturam acordes de sanfonas, pífaros, flautas e zabumbas, animando as inúmeras festas folclóricas com que são comemorados os dias dos santos da época. Antonio, o casamenteiro, João, o do carneirinho, protetor da pecuária, e Pedro, o chaveiro do céu. 

Lagoa da Canoa, ainda hoje modesto município do agreste alagoano, pertencia à florescente Arapiraca quando, em 22 de junho de 1936, em plenas comemorações juninas, embalado pelos acordes típicos, ali nasceu Hermeto Pascoal. Filho de trabalhadores rurais, escapou de trabalhar na roça, como seus irmãos, porque, sendo albino, não podia sofrer demoradas exposições ao sol. A mesma deficiência visual foi responsável pelo desenvolvimento da privilegiada acuidade auditiva que possui. Aos sete anos de idade, dedilhando, de ouvido, uma sanfona de oito baixos, impressionou os parentes e vizinhos ao ponto de o pai, também acordeonista nas horas vagas, presenteá-lo com uma outra, mais possante, que lhe despertou o interesse por diferentes instrumentos de teclado. Aos 11 anos, em dupla com José Neto, o irmão mais velho, que era pandeirista, animava bailes, batizados e casamentos num raio territorial que ia desde Batalha até Palmeira dos Índios.
Quando, em 1950, a família se mudou para o Recife, Hermeto e José Neto passaram a atuar em programas de auditório nas Rádios Tamandaré e Jornal do Comércio. Um ano depois, o caçula já se destacara como acordeonista e começava suas experimentações musicais, sempre estudando e pesquisando novos sons. 
Autodidata, interpretava, através dos foles e das teclas, qualquer ruído que escutasse. Era o início do sucesso que, após rápida passagem pela Emissora Tabajara, em João Pessoa, o levou ao Rio de Janeiro, contratado pela Rádio Mauá, onde começou a interessar-se também por piano. Daí, para chegar às boates do Rio de Janeiro e de São Paulo, foi rápido. O talentoso jovem nordestino, de aparência pouco comum, fazia sucesso em qualquer ambiente musical. Descobriu o encanto dos instrumentos de sopro e aprendeu a tocar flauta. Fez-se instrumentista e arranjador. Integrou vários conjuntos famosos, como o Trio e o Quarteto Novo, o Trio Maraya, o Som Quatro e o Sambrasa Trio. Começou a compor. Acompanhou artistas famosos. Universalizou-se. Após haver deixado a marca de seu sucesso e registrado sua criatividade em etiquetas famosas da França e dos Estados Unidos, em 1973, ao gravar, pela Philips, seu primeiro disco no Brasil, incluiu “Gaio da Roseira”, música criada por seus pais, que a cantavam nas lides do campo, por volta dos anos 40, e cuja melodia trazia guardada na mente, como reminiscência da inesquecida infância.
Detentor de vários prêmios, como Sharp, Ari Barroso, Melhor Solista e Melhor Arranjador, no Brasil e no estrangeiro, muitas das músicas de sua autoria constam de seleções laureadas. Dono de grande versatilidade, em 1996 concretizou o projeto de compor uma música para cada dia do ano, 366 no total, porque, segundo depoimento próprio, "quis também homenagear os bissextos". Batizando a coletânea de Calendário do Som, não se deu por realizado e abraçou outro desafio, uma Coleção de Chorinhos, pré- titulada de Contagem Regressiva, fadada, certamente, a alcançar a mesma repercussão de outras criações, inclusive peças sinfônicas, aplaudidas pela crítica européia e americana do norte, como quando demonstrou sua performance no Festival de Jazz da Suíça, ou nas excursões anuais que realiza pelo México, Canadá e Estados Unidos. No Brasil ou fora dele, sua versatilidade surpreende pelo domínio de teclados, flauta, violão, violino e saxofone, além dos instrumentos de sua invenção, onde utiliza a sonoridade dos mais variados objetos, como panelas, garrafas e latas.
Hermeto Pascoal, considerado um bruxo, pela forma original com que domina os sons, é um exemplo de menino pobre e obstinado que, utilizando a inteligência e a criatividade, conseguiu transpor barreiras e ampliar limites, numa comprovação de que os empecilhos, depois de vencidos, se transformam em glórias na vida dos vencedores.