O pão, o circo e a dor

30/10/2024 00h12 - Atualizado em 30/10/2024 00h12
O pão, o circo e a dor

Continuam os ecos do drama que aflige Palmeira dos Índios: a saga de quem precisa enfrentar a UPA, que estampa seu nome como Unidade de Pronto Atendimento, mas se recusa a cumprir a promessa de pronto atendimento. Ali, o cidadão comum — aquele que não possui os contatos certos ou a fortuna necessária para pagar um atendimento particular — encontra portas, ora apenas entreabertas, ora escancaradas, mas sem atendimento. A última coisa que se encontra ali é atendimento digno e eficaz.

Às vezes me pergunto: quantas filhas de mães como Maria de Fátima da Silva, precisarão gritar suas dores antes que as autoridades decidam descer de suas confortáveis cadeiras e enfrentar o problema de frente? Mas não, há sempre algo mais urgente para se fazer. Talvez um pronunciamento para justificar as deficiências, ou uma nova festa grandiosa que garanta visibilidade e manchetes. Afinal, o que é um dia a mais para quem já espera há meses por um exame? O que é uma vida a menos num lugar onde a prática do descaso já é rotina?

Vem aí um ano de mudanças, dizem os políticos. Para pior, completa o presidente da Associação dos Municípios, sem rodeios, porque não há espaço para o otimismo quando o horizonte está recheado de cortes e suspensão de verbas. E sem as tais emendas de relator — aquela polpuda quantia que dava fôlego ao custeio da saúde — o próximo ano deve ser um teste de sobrevivência para quem já acostumou a viver sem fôlego. As pequenas cidades, as que vivem no limite, terão que rebolar para garantir o mínimo: os remédios, os médicos, o atendimento que é básico, mas que aqui se torna um luxo.

É claro que não é difícil prever onde o cinto será apertado. O presidente da AMA já disse, quase como um alerta — ou uma desculpa antecipada — que os que fizeram do último ano um verdadeiro festival de celebrações precisarão repensar suas prioridades. Em vez de festas mensais, aí talvez reste celebrar apenas as datas maiores: o São João, a emancipação, o Natal. E sem a festa, o que sobra para essa administração de Palmeira dos Índios que soube esconder suas falhas por trás de shows com artistas nacionais, reformas em praças e muita rede social? Sem o circo, o pão está escasso.

É uma tragédia anunciada. O grande show que é a gestão palmeirense se sustenta nas festas, na ilusão do entretenimento. Se não há festa, não resta nada de relevante para mostrar. Sem as músicas e sem os fogos, o povo poderá finalmente enxergar, sem filtros ou distrações, que por trás do brilho há apenas um vácuo de ações que beneficiem de verdade a população. E vai doer. Vai doer perceber que enquanto houve brilho, faltou água; enquanto havia artistas de renome no palco, faltavam médicos nos consultórios; enquanto os sorrisos brilhavam sob o luar junino, as dores ecoavam pelas paredes da UPA, sem respostas, sem solução.

Mas o povo é forte. Não só em Palmeira dos Índios, mas em todo o Estado que aprende a sobreviver na escassez. O mesmo povo que hoje denuncia o descaso e compartilha a sua revolta nos grupos de WhatsApp, sabe que resistir é a única alternativa. Sem o médico, a mãe cuida do filho febril com as ervas do canteiro no quintal, com o chá que aprendeu a fazer com a avó. Sem a festa, as pessoas vão para as praças, procuram a companhia umas das outras e fazem de sua própria presença o evento.

E se no próximo ano, as prioridades mudarem? Se, em vez de shows, as verbas forem canalizadas para reformar a UPA, para contratar mais médicos, para comprar os remédios que faltam? Talvez não seja o plano, mas deveria ser. Talvez o ano que vem seja o momento de mostrar que, após o brilho dos palcos, ainda é possível cuidar do essencial — o bem-estar, a saúde, a vida.

Enquanto isso não acontece, seguimos aqui, palmeirenses, observando os acontecimentos, esperando que a realidade um dia possa ser diferente da fanfarra de uma gestão que mais se preocupa em jogar para a plateia do que em resolver os problemas reais. Talvez, em 2025, a ficha finalmente caia. Talvez, finalmente, se perceba que os fogos de artifício apagam, mas a dor do cidadão, essa sim, é permanente. O circo com seu astro principal, o imperador dos picadeiros que é o palhaço, pode até ir embora, mas a necessidade por dignidade e cuidado continua, dia após dia, esperando que um novo espetáculo comece — o da gestão responsável.