Exploração da força de trabalho: Uma forma de controle psíquico
Adentramos o século XXI impulsionados por forças tecnológicas nunca vistas antes, uma potência invisível chamada “Inteligência Artificial” invadiu nossas vidas de forma que, não tivemos sequer, a oportunidade de recusa, ou de ao menos analisar friamente quais os impactos que essa nova forma de estar no mundo, ou seja, de uma maneira também virtual, causaria em nossas vidas. É fato que virtualidade não é algo novo, podemos considerar nossa consciência e nossa memória no campo virtual desde os primórdios, mas hoje estamos falando do não humano, portanto, funcionamos de formas distintas, nós, humanos, apesar de possuirmos um inconsciente equivalente ao universo, temos limite. Segundo a Organização Mundial da Saúde - OMS, a depressão foi considerada o “mal do século”, é preciso levar em consideração que se determinada doença se torna pandêmica, é resultado de uma falha estrutural de cunho governamental que diz respeito às mais importantes instituições. Se nunca antes na história houve tantas possibilidades tecnológicas para facilitar a vida humana e levar mais conforto, por que há uma demanda cada vez maior por profissionais da saúde mental, clínicas psiquiátricas estão a cada dia mais cheias e as pessoas precisando cada vez mais de medicamentos para poder levantar da cama e encarar a vida?
É bem possível que os medicamentos lícitos ou não, disfarcem o cansaço excessivo de um corpo explorado pelo trabalho, mas há outros indícios que denunciam o mal estar da existência na “sociedade do desempenho”, termo citado pelo filósofo Byung-Chul Han na obra “Sociedade do Cansaço”. Pernas inquietas, impaciência no trânsito, atenção precária, irritação excessiva, impossibilidade de lidar com o tédio são alguns dos sintomas que fazem parte da rotina de várias pessoas. Talvez pelo fato de estarem anestesiadas, normalizam essa performance com a narrativa de que estão sendo produtivas e se realizando profissionalmente, na maioria das vezes a alienação chega a ser de tal forma, que o indivíduo só percebe que está doente quando o corpo colapsa. Podemos culpabilizar apenas o sujeito por essa “escolha” de estilo de vida? É necessário analisar de forma macro o que está por trás desse processo de transformação no campo do trabalho. As cortinas caíram, estamos diante dos bastidores da sociedade, nunca antes se falou tanto em saúde mental, as pessoas estão nitidamente pedindo socorro, debatendo sobre como encontrar uma bifurcação nessa estrutura que está arrancando a dignidade, destruindo singularidades e sufocando subjetividades. Essa é a maior contradição do neoliberalismo, que prometeu fazer do indivíduo um empresário de si mesmo e acabou por transformar todos numa coisa só - zumbis que rolam sem pausa numa roda de hamster.
Precisamos desacelerar e contra fatos não há argumentos. Se este ponto pode ser colocado como proposta, hoje, podemos afirmar que somos privilegiados, pois refletir e chegar a esta conclusão na “sociedade do desempenho” é para poucos, além da alienação do trabalho como forma de realização pessoal, existe também a alienação da mercadoria, as pessoas chegam ao limite físico e mental, mas o que importa, afinal, é que elas possam comprar. A vida está sendo negada e Nietzsche já enxergava isso no século XIX. Não queremos viver numa sociedade adoecida em tantos âmbitos, precisamos rejeitar essa forma de vida para fazer nascer uma nova, e nós como psicanalistas precisamos atualizar nossa práxis, antes era possível ficar apenas no consultório esperando o analisando, hoje isso não é o suficiente, precisamos denunciar o sistema. Se for necessário ter consciência do próprio adoecimento para procurar a análise, como uma sociedade que aceita o imperativo do excesso de positividade vai reconhecer em algum momento que está olhando para o abismo e consequentemente levando consigo os demais? Se cada um é empreendedor de si e esse “cada um” está sendo levado ao limite da exaustão, o problema se torna coletivo, é uma falácia que não precisamos do outro, é impossível viver sem solidariedade e cooperação e repito: como profissionais da área da saúde mental, precisamos estender nossas vozes para fora dos consultórios.
Podemos discutir eternamente teorias psicanalíticas numa zona de conforto acadêmica, a clínica é a práxis da psicanálise, sentar e ouvir atenciosamente cada existência que adentra um consultório é o coração desta nobre ocupação. A prática vai continuar acontecendo desta forma, o que não deve é acontecer – apenas desta forma. A psicanálise há pouco tempo não circulava por muitos meios, não é sequer ainda, uma palavra que soa familiar à população, e o que é para poucos se torna privilégio e se nosso desejo é viver numa sociedade saudável, é preciso que a análise se torne um direito. Antes do distanciamento social causado pela pandemia, já podíamos enxergar que havia uma intenção obscura em arrancar nossa humanidade e enquanto essa ideologia vil desprezar o belo ela estará em oposição para exaltá-lo e afirmar a vida. A tecnologia tem muitos benefícios, mas, ainda acreditamos na carne. O corpo fala. O nosso está suplicando pela volta das borboletas no estômago, pelo “soco”; pela chuva molhando a pele, pelo gozo escorrendo pelas pernas como a chuva, pela boa memória, pela amputação do smartphone, por não viver no automático.