Artigos
Religião e controle das leis
Há raríssimas manifestações sobre o assunto religião, e em geral elas ocorrem quando grupos de interesse do poder religioso se portam de maneira estridente sobre algumas questões. Por exemplo, numa oportunidade em que um pastor se deu a dizer tolices numa comissão do Poder Legislativo Federal, ou naquela outra em que a diocese católica do Rio de Janeiro queria impedir que a imagem de uma estátua dedicada a Jesus Cristo aparecesse em um filme.
Nessas ocasiões, sobre temas muito pontuais e por tempo demasiado curto, poucas vozes emergiram sobre o controle social que os religiosos, ademais do que já têm, pretendiam ampliar. Estas falas circunscritas de indignação quedaram-se silentes após pequenas batalhas, enquanto os religiosos, metodicamente, cotidianamente, laboriosamente vão à luta em tantos lugares, por tantos meios.
Como não somos ideologicamente iluministas (os ideais da Revolução Francesa entraram escassamente nas tradições espanhola e portuguesa), nos insurgimos contra essas questões apenas quando elas nos incomodam particularmente. Não tratamos a laicidade do Estado como coisa de interesse público. Não vemos a secularidade como conquista do processo civilizatório. Em verdade, a nossa mentalidade dominante não é nem laica nem republicana. O Brasil é, ainda, como os da rabeira do mundo, um país religioso.
Basta que se atente para as designações que se deram e se dão às nossas cidades e, nas cidades, aos bairros, e, nos bairros, às ruas, aos educandários, hospitais etc. Salvo os lugares em que os indígenas se anteciparam ou os políticos se aceleraram, tudo é nome de gente que a igreja católica considera santa. E até a denominação das pessoas, a grande parcela é bíblica.
Por aqui, se nasce, cresce, realiza contratos amorosos, envelhece e morre marcado por rituais de religião. Mesmo, ou principalmente, o sistema educacional, que seria para ilustrar, é eivado de procedimentos medievais com conteúdo de culto. Igualmente sucede com os meios de comunicação de massa: rádio e televisão foram convertidos em púlpitos de pregação. E que se perceba a invasão da internet: guardiões se fazem atentos ao que condenar e prolíficos na divulgação da “palavra”.
A maneira de pensar brasileira é sitiada por compreensões religiosas do mundo. Somos, ideologicamente, gente de fé; não somos um povo de ciência. Nossos caminhos mais vincados levam aos templos, não às bibliotecas. Os religiosos sabem disso, são ciosos dos seus sectários (e dos seus negócios) e investem, não raro com ânimo comercial, em mais e em tudo o que podem e mesmo no que não podem. Não brincam em serviço.
Ademais de tudo o que já ocuparam, os religiosos travam um combate ostensivo, objetivando os espaços institucionais públicos. Uma batalha ideológica de viés religioso é levada à frente de modo consistente, organizado, diuturno, em todos os sítios imagináveis. As igrejas, na expressão de Gramsci, estão em guerra de posição. Atualmente investem sobre as casas legislativas; querem a produção das leis.
Alexandre Nóbrega Duarte, em http://migre.me/lDdv4, traz informações que confirmam meu dizer. Sob a autodenominação de pastor\pastora, irmão\irmã, bispo\bispa, padre (perceba-se o sexismo católico: não há mulher), missionária, ou seja, de religioso\as praticantes, está a terceira maior nominata de candidatos\candidatas ao Legislativo brasileiro.
Sobre isso, há que se considerar a formação e o comprometimento religioso da quase totalidade dos demais postulantes. Esse mesmo pesquisador, em http://migre.me/lDdEA, onde levanta e cruza dados sobre a participação de catequistas, encerra seu artigo com uma pergunta que eu também me faço: “Se com o crescimento de 1.76% no número de candidatos líderes religiosos de 2006 para 2010 o número de eleitos nesta área aumentou em 91.7%, o que vai acontecer em 2014, com um contingente 34.73% maior de líderes religiosos disputando cargos eletivos?”
Trazendo para a legislatura 2023/2027: “De acordo com o levantamento, dos 513 deputados eleitos que compõem a Câmara Federal a partir de 2023, 399 tiveram sua confissão religiosa identificada (77,78%). O maior número [...] tem identidade católica (233 ou 45,41%), o que acompanha a tendência dos registros de religião da população, ainda de maioria católica. Em segundo lugar, estão os [...] identificados com a identidade “cristã” (83 ou 16,17%), seguidos daqueles cuja confessionalidade é evangélica (76 ou 14,8%).
Outras confissões religiosas têm uma presença bem menor, com a manutenção da hegemonia cristã [...]: são três afrorreligiosos (0,6%), três espíritas (0,58%) e uma parlamentar de espiritualidade indígena (0,19%). Entre os suplentes (oito até o presente momento), identificamos um agnóstico, um católico, um ateu, um afrorreligioso, um evangélico, um católico, um cristão e um não identificado” (Um mapa da identidade religiosa dos deputados e deputas federais empossados, dez23, Nexo).
Confundimos liberdade religiosa com licença para doutrinação religiosa; agora, com ocupação do Estado Legislativo. Quanto à questão da liberdade individual de religião, eu questiono a doutrinação de crianças, operadas em plateia cativa por sistemas de catequese forçada, inclusive em escolas públicas. Já, em sendo pessoa adulta, tenho sua decisão de crença como de caráter pessoal: é o que se nomeia livre arbítrio.
O argumento, contudo, não se sustenta quanto ao Estado, que deve amparar o livre arbítrio religioso, jamais comprometer-se com uma religião. Só o Poder Público laico pode propiciar a atividade pacífica das variadas religiões no seio da sociedade civil. Não por acaso, Stuart Mill, teórico fundador deste tema, em Sobre a Liberdade (1859), sustenta que a laicidade estatal é necessária justamente para garantir a liberdade religiosa como um direito individual.
Mais lidas
-
1TECNOLOGIA MILITAR
Revista americana destaca caças russos de 4ª geração com empuxo vetorado
-
2TECNOLOGIA
Avião russo 'Baikal' faz voo inaugural com motor e hélice produzidos no país
-
3CRISE INTERNACIONAL
UE congela ativos russos e ameaça estabilidade financeira global, alerta analista
-
4TENSÃO INTERNACIONAL
Confisco de ativos russos pode acelerar declínio da União Europeia, alerta jornalista britânico
-
5OPERAÇÃO INTERNACIONAL
Guarda Costeira dos EUA enfrenta desafios para apreender terceiro petroleiro ligado à Venezuela