Internacional

Torcidas organizadas contra Milei: nova frente popular pode mudar rumo da oposição na Argentina?

Sputinik Brasil 08/04/2025
Torcidas organizadas contra Milei: nova frente popular pode mudar rumo da oposição na Argentina?
Foto: © AP Photo / Rodrigo Abd

Classificados pelo governo do presidente Javier Milei como uma tentativa de golpe de Estado na Argentina, os protestos que reúnem torcidas organizadas que são rivais históricas prometem trazer um novo capítulo para a história política do país que tem vivido fortes turbulências nos últimos anos. Especialistas analisam impactos ao podcast Mundioka.

Em meio às medidas tomadas pelo governo Milei para cortar gastos públicos, a Previdência Social é a que mais tem sofrido desde o início do mandato e também é indiretamente responsável pelo surgimento de uma nova frente ampla popular que pode mudar o xadrez político da Argentina.

Tudo começou quando o presidente decidiu vetar o reajuste acima da inflação nos salários da aposentadoria, que estavam praticamente congelados e não supriam o mínimo para viver, como alimentação e aluguel. Nesse combo, ainda inclui uma medida que passou a excluir do sistema previdenciário qualquer pessoa que não tivesse contribuído por pelo menos 30 anos, o que deixou mais de 250 mil pessoas desamparadas no país.

Em protesto, um torcedor de um dos times mais tradicionais de Buenos Aires, o Chacarita Juniors, foi até a porta do Congresso vestido com uma camiseta do clube para mostrar indignação com o veto que afetou drasticamente mais de sete milhões de aposentados do país. Mas, de forma brutal e a pedido da presidência, ele foi agredido e as imagens da situação geraram comoção nacional.

Isso foi a fagulha necessária para fazer com que torcidas organizadas, inclusive de clubes que são rivais históricos, tomassem as ruas da Argentina em apoio à causa. Do outro lado, como reação ao crescimento desses protestos, o governo argentino chegou a classificar os atos como uma tentativa de golpe de Estado.

Especialista em relações internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador da Universidade Federal de Goiás, João Paulo Arraes explicou ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, que com a enfraquecimento dos sindicatos na Argentina, existia um vácuo de lideranças ou grupos no país capazes de convocarem grandes mobilizações.

"Existia dentro do governo Milei e da direita libertária argentina que está no poder uma grande autoconfiança de que toda a população estava com eles e que iriam varrer o peronismo do país, assim como os movimentos sociais e populares. Mas o que temos visto não é exatamente isso. Ficou bem claro que a população ainda se mobiliza e que está completamente insatisfeita, inclusive com governos anteriores. E esse movimento saiu de maneira orgânica, e não dentro da política tradicional, o que tem gerado desespero no governo Milei, que inclusive tem agido de forma completamente brutal, injusta e desmedida", pontua.

Para o especialista, há um novo movimento político que surge na Argentina sem qualquer financiamento ou apoio institucional, panorama "completamente diferente do que já existiu" no país. "E com um perfil diferente do que era antes, em geral pessoas mais jovens, e agora idosos e trabalhadores de meia idade. É uma preocupação gigantesca para Milei, já que mostra a população contra ele. Ainda acredito que pode gerar um novo paradigma político na Argentina", enfatiza.

Quem era presidente da Argentina antes de Milei?

Em um mandato marcado pelas dificuldades econômicas que se intensificaram por conta da pandemia da COVID-19, o ex-presidente Alberto Fernandéz, que não disputou na época a reeleição, viu o candidato governista perder para uma figura que até então jamais havia ocupado um cargo político: o economista Javier Milei. Porém, João Paulo Arraes pontua que a população argentina não votou no candidato, mas sim contra a política econômica da gestão anterior.

"Mas a motoserra do Milei só corta na carne [com suas medidas de corte de gastos] da população carente e desprivilegiada. Ele está conseguindo abaixar o nível de inflação e gerar alguma estabilidade cambial na Argentina, mas a que custo isso tem acontecido?", questiona.

E os aposentados, inclusive, são um dos grupos sociais que mais têm sofrido com as novas políticas de austeridade, situação que o especialista compara ao que ocorreu no país durante a década de 1990, quando o ex-presidente Carlos Menem tentava dolarizar a economia argentina e recorria aos empréstimos junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para injetar dinheiro de forma artificial no país.

"O que temos hoje é uma comoção nacional com a violência contra os idosos, com as mesmas manifestações que ocorreram no passado. E eu acho que essa agressão vai continuar a aumentar, até porque a Patrícia Bullrich [ministra da Segurança], que se dizia ser o lado equilibrado do governo Milei, decretou os manifestantes idosos como terroristas políticos, usando a estratégia de que as barras bravas [como são conhecidas as torcidas organizadas no país] são piqueteiros [termo no país que se refere às manifestações da classe trabalhadora] disfarçados de torcedores políticos, o que é uma grande mentira", conclui.

Quais são as 5 maiores torcidas da Argentina?

Conhecidos como os "cinco grandes", as maiores torcidas organizadas da Argentina são ligadas aos clubes Boca Juniors, Independiente, Racing, River Plate e San Lorenzo de Almagro. Apesar da histórica rivalidade no futebol, esses grupos se uniram aos protestos dos últimos dois meses que têm chamado a atenção de todo o mundo. A professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Regiane Bressan pontuou ao podcast Mundioka a enorme capacidade de mobilização dessas torcidas, inclusive para defender causas sociais que consideram importantes.

"Ainda que estejamos vendo isso acontecer apenas agora, a adesão das torcidas organizadas se entrelaça com a história do futebol do país e o cenário político e social atual. Esses grupos possuem envolvimento direto em questões políticas e sociais do país desde a época da ditadura militar argentina, que foi de 1976 a 1983 [...]. E os impactos das reformas de Javier Milei esbarram justamente nessas causas, já que são medidas de austeridade que afetam a vida da sociedade argentina, principalmente de classes mais baixas", argumenta.

Assim como Paulo Arraes, a especialista acredita que o cenário político na Argentina vai continuar tenso. "Assim como no Brasil, as torcidas organizadas possuem uma forte ligação com as comunidades locais e classes populares, o que confere uma dimensão popular e genuína às manifestações e também dificulta a narrativa do próprio Milei de que se trata de uma ação de terroristas", finaliza.