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Análise: UE apoia ascensão do Hayat Tahrir al-Sham na Síria para cessar fluxo de refugiados

Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que a questão central da União Europeia (UE) na Síria não era a proteção dos direitos humanos, mas conter o fluxo de refugiados do país, o que levou o bloco a apoiar o Hayat Tahrir al-Sham em oposição a As

26/12/2024
Análise: UE apoia ascensão do Hayat Tahrir al-Sham na Síria para cessar fluxo de refugiados
Foto: © AP Photo / Leo Correa

A UE está analisando suspender as sanções impostas à Síria, segundo informou recentemente a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. A medida é estudada após a ascensão ao poder do grupo Hayat Tahrir al-Sham.

As sanções da UE foram impostas em alinhamento aos EUA durante os protestos da chamada Primavera Árabe, que eclodiu em 2011, como forma de pressionar o governo do presidente Bashar al-Assad, classificado por Washington e aliados europeus como um regime autoritário.

Sob o argumento de retaliar o governo Assad por supostas violações de direitos humanos, por anos as sanções estrangularam a economia síria e agravaram a situação da população do país, provocando uma grande crise humanitária. Embora seja visto como algo positivo, o debate em torno da retirada de sanções indica um duplo padrão da UE, uma vez que o Hayat Tahrir al-Sham, que chegou ao poder por meio das armas, é considerado uma organização terrorista pelo próprio bloco europeu.

Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas explicam por que o Hayat Tahrir al-Sham recebe da UE um tratamento diferenciado daquele dado ao governo Assad e se a Síria pode ser, de fato, considerada um país pacificado.

Issam Rabih Menem, doutorando em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Núcleo de Pesquisa sobre as Relações Internacionais do Mundo Árabe (Nuprima), afirma que, a princípio, a ascensão do Hayat Tahrir al-Sham traz a expectativa de pacificação, mas em longo prazo o cenário ainda é incerto.

"Internacionalmente, boa parte dos embargos comerciais tende a se dissolver ou abrandar, especialmente pela participação direta de potências ocidentais na operação que resultou na queda de Assad. Entretanto, socialmente, o quadro tende a permanecer instável, visto que muitas comunidades internas, especialmente minorias religiosas, temem um governo dominado por lideranças tradicionalmente ligadas a correntes islâmicas fundamentalistas", afirma.

Ele enfatiza que o Hayat Tahrir al-Sham é designado como uma organização terrorista por uma importante parcela das potências ocidentais, incluindo os EUA e a UE. Também ressalta que ainda há suspeitas de ligação do grupo com a Al-Qaeda, apesar do rompimento, e diz que a ascensão ao grupo fez de seu líder um dos homens mais poderosos do país.

"O movimento foi concebido em 2017 a partir do Jabhat al-Nusra, um importante ator da guerra civil síria de matriz salafi-jihadista. Apesar de declarar independência da Al-Qaeda, persistem suspeitas de vínculo. Ao liderar a marcha a Damasco, Abu Mohammad al-Julani desponta como o homem mais poderoso política e militarmente nessa nova Síria."

Por sua vez, Gabriel Mathias Soares, doutor em história social, mestre em estudos árabes pela Universidade de São Paulo (USP) e ex-monitor de direitos humanos na Cisjordânia, ressalta que a tomada de poder pelo Hayat Tahrir al-Sham ainda não está completa, pois ainda há regiões do país sob o controle de outros grupos, como Forças Democráticas Sírias (SDF, na sigla em inglês), lideradas pelos curdos do PYD (Partido de União Democrática, em tradução livre), e vários outros grupos que operam sob bandeiras distintas.

"Uma pacificação só acontecerá ou com um grande acordo entre todas essas forças ou com a sobreposição de uma sobre as outras. É muito difícil imaginar o último cenário sem requisitar muita violência. E isso sem falar nos atores externos", explica.

Ele acrescenta que há também o papel dos EUA nas regiões do noroeste da Síria, onde mantêm bases desde a guerra com o Daesh (organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países). A região, de acordo com o especialista, é a única produtora de petróleo da Síria, além de ser o celeiro do país — recursos essenciais para a população síria.

"Nas regiões outrora sob o governo sírio de Bashar al-Assad, a carência dos recursos dessa região somava-se às sanções debilitantes que tornavam miseráveis as populações. Uma das mudanças imediatas vistas depois do colapso desse governo foi um melhor fornecimento de energia, visto que Idlib — região sob o [controle do] Hayat Tahrir al-Sham e de outros grupos — obtinham eletricidade por outros meios através da Turquia e, em alguma medida, contornavam as sanções americanas do Caesar Act. Soma-se a isso as investidas recentes de Israel sobre o território remanescente das Colinas de Golã e áreas circundantes, o que significa que agora um terço da água potável do país está sob controle israelense."

Para Soares, a ocupação desses territórios estratégicos torna um cenário de pacificação e união na Síria ainda mais difícil, salvo se houver algum grande acordo com inúmeras concessões a potências estrangeiras.

"É um imenso desafio, e isso sem sequer considerar os problemas internos ao Hayat Tahrir al-Sham em sua relação histórica com grupos seculares, minorias religiosas e tudo mais, visto que origina-se de uma dissidência da Al-Qaeda, se é possível chamar assim, sendo que seu líder, Ahmad Al-Shara ou Abu Mohammad al-Julani, foi membro da Al-Qaeda no Iraque, vice do fundador do ISIS [Abu Bakr al-Baghdadi] e líder fundador da antiga sucursal da Al-Qaeda na Síria [Jabhat al-Nusra] até abolir o grupo, transformando em Jabhat Tahrir al-Sham e, depois, na atual Hayat Tahrir al-Sham."

Soares afirma que se o sistema de governo instaurado pelo Hayat Tahrir al-Sham em Idlib for um indicativo do que está por vir em todo o país, o cenário não é muito alentador para a sociedade, em especial para as minorias religiosas. Ele frisa que há quem considere que o Hayat Tahrir al-Sham dependeu muito do apoio e do reconhecimento de atores como Turquia e Catar para ascender ao poder, o que indicaria alguma medida de concessão em relação à tolerância, mas destaca que na história há exemplos que mostram que isso pode não se confirmar.

"Não podemos esquecer outros exemplos, inclusive o Talibã, que prometeu um grau maior de tolerância, como a educação feminina, mas foi aos poucos se tornando muito mais restritivo. Por mais distinto que o Afeganistão seja da Síria, a comparação aqui seria mais em relação à questão do cumprimento das pautas que o grupo contesta ideologicamente", explica.

Ele acrescenta que no momento tudo é muito ambíguo, mas não considera que o destino da Síria atual esteja majoritariamente nas mãos do povo sírio, visto o peso desproporcional de agentes externos.

"Pode vir a ser assim, mas depende de um amplo recuo de todo o enorme envolvimento estrangeiro que só se consolidou nos últimos 13 anos."

Por que a UE dá tratamento diferente ao grupo, se o considera terrorista?

Soares explica que desde a eclosão da guerra civil síria sempre houve lados com relações multifacetadas, incluindo o apoio material e financeiro a distintos grupos, tendo como principais financiadores países do Golfo e os EUA.

Já em relação à UE ele aponta que a questão fundamental era o problema dos refugiados sírios e isso passava não só pela alteração da situação na Síria, mas por acordos com o local que era a principal via para chegada na Europa, a Turquia.

"Desse modo, a maior parte das posições turcas foram toleradas, se não apoiadas pelos governos europeus. A própria Turquia também tem uma questão central com milhões de refugiados sírios em seu território. Portanto, uma solução para essa situação era e ainda é de comum interesse do governo turco e da União Europeia. Portanto, é muito mais essas questões que orientam a política externa da UE, que violações de direitos humanos, visto a total apatia e grande cumplicidade com o genocídio de palestinos em Gaza por Israel nos últimos 14-15 meses."

Ele afirma que "as enormes atrocidades cometidas contra população civil em Gaza por Israel" tornam "mais do que óbvio que direitos humanos não são o parâmetro central da política da UE, como não são de outros países".

"Salvo os EUA, há poucos governos que se atribuem a si mesmos a posição de paradigma máximo dos direitos humanos e da democracia quanto a UE. Entretanto, isso sempre foi aplicado seletivamente com alvos geopolíticos, enquanto ignorado em relação aos aliados."

Para Soares, imaginar que existe um princípio universal de um peso e uma medida "é a grande ilusão que promove o discurso liberal hegemônico, mas que nunca, em absolutamente nenhum momento, foi a realidade".

"Os Estados que mais promoveram os ideais e instituições que se alcunham o epíteto de 'humanas' e 'universais' eram eles próprios países colonialistas até ao menos a Segunda Guerra Mundial, aplicando um sistema de discriminação e exploração sistemática de suas colônias. Não havia igualdade entre colonizador e colonizado quando esses mesmos países ratificaram seu comprometimento com os 'direitos humanos' e outros tratados internacionais."

Segundo Soares, na medida que processos de descolonização foram se formalizando e que a oposição central ao sistema capitalista foi definhando, esses Estados se reinventaram como o verdadeiro paradigma máximo do respeito a liberdade, diversidade e direitos humanos, como se toda a colonização brutal fosse coisa só do passado.

Ele afirma que a hegemonia euro-americana do pós-Guerra Fria facilitava a manutenção dessa ideologia, mas as fraturas manifestas nas distintas crises do sistema internacional fragilizaram essa narrativa.

"Agora há emergência de outros grupos de países que apontam para um chamado mundo multipolar, mas é preciso ter em mente que é muito incipiente ainda e não é de todo certo. Há muitas acomodações que surgem nesse cenário que se desvela", afirma.

Menem avalia que a contradição da política de dois pesos e duas medidas ocorre porque na geopolítica internacional os interesses estratégicos frequentemente se sobrepõem a considerações éticas e morais.

"Os Estados e outros atores internacionais priorizam seus interesses nacionais, geopolíticos e econômicos, utilizando os direitos humanos como uma ferramenta política para justificar ou condenar determinadas ações, conforme seus objetivos. Não há dúvida de que essa reconfiguração da Síria premiou geopoliticamente seus financiadores e apoiadores externos", afirma.

Por Sputinik Brasil