Brasil
Analista: erradicar a fome exige lógica que não seja a de celeiro que 'entope mundo de soja e carne'
A Aliança Global contra a Fome e a Pobreza proposta pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Cúpula do G20, no Rio de Janeiro, parece ter sido a principal vitória do Brasil na presidência rotativa do grupo das maiores economias do mundo.
A iniciativa já conta com a adesão de 82 países, 26 organizações internacionais, 9 instituições financeiras e 31 fundações filantrópicas e organizações não governamentais.
No discurso de abertura da cúpula, na última segunda-feira (18), Lula citou dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) que apontam que o mundo convive com um contingente de 733 milhões de pessoas subnutridas e afirmou que a fome é produto de decisões políticas que perpetuam a exclusão de grande parte da humanidade.
Apesar dos avanços na pauta da segurança alimentar, os desafios que se impõem na luta contra a fome e a pobreza demandam mudanças estruturais e que se defrontem com o modelo de desenvolvimento vigente, de acordo com especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil no podcast Mundioka desta quarta-feira (20).
"O mundo nunca produziu tanto alimento quanto agora. E a fome continua lá com os 800 milhões, 700 milhões — oscila um pouquinho, sobe um pouquinho, desce um pouquinho, mas está sempre por ali, entre 700 e 800 milhões de pessoas […]. O problema da fome não é um problema de disponibilidade, é um problema de acesso", disse o coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Renato Maluf.
Ele condenou a visão economicista de mercado que muitas nações têm de que atividade econômica e eficiência produtiva são a solução do problema da fome. A adoção de modelos agroecológicos, baseados na agricultura familiar diversificada, que valorizam a sociobiodiversidade, são a chave para a promoção de uma alimentação adequada e saudável, defendeu:
"Esse é um outro caminho, diferente dessa ideia do celeiro do mundo que entope o mundo de soja e carne. Não estou dizendo que não tem que ter soja nem carne. Tem um modelo dominante que é danoso em vários aspectos, inclusive na saúde humana; é isso que precisa ser questionado."
O economista e diretor da FGV Social, Marcelo Nery, também conversou com a Sputnik Brasil e abordou a contradição brasileira de abraçar as causas do combate à fome e do desenvolvimento sustentável e, ao mesmo tempo, investir no modelo de produção de commodities agrícolas.
"Tem os dois lados da moeda. A fazenda do mundo, no sentido de ser um grande produtor de alimentos, mas remonta também a toda uma tradição de monocultura, de uma sociedade escravocrata. Então [o Brasil] está nos dois lados da moeda, como produtor de alimentos, e isso é um status que tem avançado nas últimas décadas, nos últimos anos; mas também pelo lado de combate à fome, à pobreza, à desigualdade, que são males que afligem o Brasil mais do que deveriam, dado o nosso nível de desenvolvimento", opinou o economista.
Nery argumentou que em um período de 15 anos a extrema pobreza no Brasil caiu à metade, mas a fome até 2022 aumentou, e comentou que a iniciativa do governo anterior, de Jair Bolsonaro, de encerrar programas e instrumentos de promoção da segurança alimentar provou como é fácil retroceder nessa área:
"Acho que o caso brasileiro mostra que quando você desestrutura o combate à fome, por exemplo com o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, coloca em segundo plano a questão da merenda escolar, do apoio à agricultura familiar, uma série de ações que o Brasil tomava, […] a fome cresce."
Nery frisou que ações bem-integradas são capazes de obter, no curto prazo, avanços importantes, e citou o Bolsa Família como um bom começo para mitigar a fome e a pobreza.
Maluf também defendeu que o enfrentamento dos problemas distributivos é o primeiro passo para encarar o problema:
"O enfrentamento da fome, assim como o enfrentamento da pobreza, são fenômenos que têm múltiplas dimensões, portanto exigem múltiplos instrumentos […]. Nossa sociedade não é desigual por um desígnio divino, você tem causas muito identificáveis […]. É uma desigualdade que tem origem na concentração da propriedade da terra, em questões raciais, que tem origem no solo urbano", argumentou, frisando que o combate à fome deve ser intersetorial e com muita participação social.
De acordo com o especialista, as commodities são fruto de um padrão "completamente pobre do ponto de vista alimentar".
"É um tipo de alimentação associada com doenças não transmissíveis, como a obesidade. Considero uma falácia dizer que há uma segurança alimentar mundial e um enfrentamento da fome no mundo que pode e deve ser feito por meio da agricultura de larga escala tecnificada, da monocultura, com produtos processados e ultraprocessados e fluxos internacionais sob controle das grandes corporações."
Citando dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), ele destacou que a obesidade hoje mata muito mais do que a fome, cujas principais vítimas são as pessoas pobres.
Sobre a obesidade, o diretor da FGV Social acrescentou:
"É mais complexo do que apenas pessoas sem comida para comer. Fala-se pouco da qualidade e da quantidade de alimentação que passa por hábitos culturais que estão sendo mudados a uma velocidade grande neste mundo de Internet, neste mundo de trabalho remoto", declarou, ao defender que as pessoas também precisam ser informadas e formadas a respeito disso.
Maluf pontuou que mudar essa lógica de baratear produtos nocivos à saúde é um dos maiores desafios, por serem mercadorias de elevado grau de mercantilização e de financeirização em uma realidade na qual a alimentação saudável não é rentável.
Ainda segundo ele, há séculos os alimentos são usados como instrumento de poder, e o não acesso a alimentos pode ser resultado de ações deliberadas de controle.
"Tem, sim, um componente político da fome muito forte, e isso já nos ensinava Josué de Castro, em sua 'Geografia da fome', em 1946, quando dizia que a fome não era produto de nenhum tipo de fatalidade, de nenhum tipo de característica cultural; era fruto da ação humana, fruto de modelos de desenvolvimento", comentou ele ao citar o médico pernambucano, que foi um dos grandes nomes do país no combate à fome, também citado por Lula em seu discurso na Cúpula do G20.
Por Sputinik Brasil
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