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Hiperinflação, Guerra Fria e primeira vitória de Senna na F1: como eram o Brasil e o mundo em 1985, início do Rock in Rio

Começo do festival, que abre edição comemorativa de 40 anos nesta sexta-feira (13), coincidiu com a eleição do primeiro presidente civil do após mais de 20 anos de ditadura militar, lançamento de hit de Madonna e bestseller de Milan Kundera

Agência O Globo - 12/09/2024
Hiperinflação, Guerra Fria e primeira vitória de Senna na F1: como eram o Brasil e o mundo em 1985, início do Rock in Rio

Desde seus primórdios, o rock sempre esteve associado à liberdade e, no Brasil, essa coincidência é ainda mais curiosa: a primeira edição do Rock in Rio ocorreu simultaneamente a um dos principais eventos da transição democrática: a eleição indireta de Tancredo Neves à Presidência da República, que enterrou de vez uma ditadura militar que beirava 21 anos.

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“Tancredo só vai anunciar em março o Ministério”, dizia a manchete do GLOBO no dia 11. Faltavam apenas quatro dias para a votação no Congresso Nacional e o jornal informava que o político mineiro estava preocupado com especulações quanto à equipe de seu eventual governo. Ao lado da notícia sobre a transição democrática, outra chamada anunciava: “Começa a festa na cidade do rock”.

Naqueles dias, Tancredo e o Rock in Rio disputavam espaço na capa do jornal. “Todo o país celebra a eleição de Tancredo”, gritava a manchete do GLOBO no dia 15. Abaixo, um título informava: “Festa do Nordeste na cidade do rock”. No dia anterior, Moraes Moreira e Alceu Valença haviam animado o público “apesar da chuva”.

Inflação recorde

Mas nem tudo era rock e democracia naquele janeiro de 1985. O Brasil sofria com a hiperinflação e a dívida externa explodia. Veja só esses preços: nas bancas, o GLOBO custava Cr$ 800 e um ingresso do Rock in Rio saía por Cr$ 19.900. No dia 18, o jornal noticiou que o Índice de Preços ao Consumidor acumulado nos últimos 12 meses batera “um recorde”: 211%. Enquanto isso, o então presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore ia à Nova York renegociar a dívida externa brasileira.

Reagan e Gorbachev

Em 1985, a política fervia. A Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética ainda dava o tom da geopolítica internacional. Em 14 de janeiro, o GLOBO noticiou que, no dia anterior, um “domingo de sol, tranquilo”, as crianças se divertiram no Rock in Rio. E que o então secretário de Estado americano, George Schultz, afirmara que o país continuaria “a instalar os mísseis na Europa”.

No dia 20, data de encerramento do festival, Ronald Reagan, um dos protagonistas da revolução conservadora dos anos 1980, tomou posse para seu segundo mandato na Casa Branca. Meses depois, Mikhail Gorbachev assumiria o governo soviético e iniciaria o processo de abertura política e econômica que resultaria no colapso do bloco socialista.

No Brasil, a alegria com a eleição de Tancredo durou pouco. O político mineiro morreu em 21 de abril, antes de ser empossado presidente. Quem assumiu o governo foi seu vice, José Sarney.

A famosa foto de FHC

A eleição para a Prefeitura de São Paulo também deu o que falar. O então senador Fernando Henrique Cardoso parecia destinado ao cargo, mas perdeu para o ex-presidente Jânio Quadros. FHC estava tão certo da vitória que, durante a eleição, chegou a se sentar na cadeira do prefeito (seu aliado Mário Covas) para uma sessão de fotos.

Eleito, Jânio não perdoou a soberba do adversário. “Gostaria que os senhores testemunhassem que estou desinfetando esta poltrona porque nádegas indevidas a usaram”, provocou. “Porque o senhor Henrique Cardoso nunca teria o direito de sentar-se cá e o fez, de forma abusiva. Por isso, desinfeto”.

Brizola contra a Cidade do Rock

O Rock in Rio também não conseguiu escapar da política. À época, o governador do Rio era Leonel Brizola, que mandou demolir a Cidade do Rock, na Barra da Tijuca, após o término do festival. Roberto Medina, criador do Rock in Rio, disse depois que Brizola encrencou com o evento desde o começo.

“Um ex-secretário de Brizola me contou que o prefeito queria cortar minhas asas. Achava que eu estava em grande evidência no Rio e poderia ter aspirações políticas”, afirmou Medina à Revista ÉPOCA.

Ayrton Senna, Madonna, Kundera

Se clima político estava quente, o mesmo não se podia dizer do inverno daquele ano no Hemisfério Norte, que foi glacial. Durante o Rock in Rio, o GLOBO noticiou neve no Texas, temperaturas de 41 graus negativos na Europa e mais de 300 mortos de frio na Índia. Em Paris, os “democratas cheios de justiça e calor” foram convocados para uma manifestação contra o frio.

Quem quisesse se aquecer, porém, podia ligar o rádio e dançar ao som de “Like a virgin”, hit de Madonna que havia sido lançado no fim do ano anterior e assegurou o lugar da cantoria no céu do pop. “Like a virgin” ficou em segundo lugar nas paradas de sucesso de 1985, só perdeu para “Careless whisper”, de George Michel (ainda no duo Wham!). Naquele ano, também foi lançado “Take on me”, maior sucesso da banda norueguesa A-ha. O videoclipe, que misturava animação feita a lápis e live-action, faturou seis prêmios no MTV Video Music Awards de 1986.

Enquanto as paradas de sucesso eram dominadas pelo pop dançante, o campeão da lista de mais vendidos era o tcheco Milan Kundera, que havia acabado de lançar “A insustentável leveza do ser”. Com sarcasmo e pitadas de filosofia (de Parmênides a Nietzsche), o romance discute o amor, o sexo, a liberdade e a repressão política que se seguiu à Primavera de Praga, em 1968. Fez sucesso no mundo todo, inclusive no Brasil. Mas nem todo mundo gostou. No GLOBO, Muniz Sodré chamou Kundera de “mestre do texto digestível” e o acusou de “excessiva adequação ao espírito mercadológico do momento”.

Ao menos uma unanimidade, porém, surgiu naquele 1985: Ayrton Senna. O piloto obteve sua primeira vitória na Fórmula 1, em Portugal, em 21 de abril de 1985, no mesmo dia em que morreu Tancredo Neves, o primeiro presidente da Nova República, que nunca tomou posse, eleito no quinto dia daquele primeiro Rock in Rio.