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Walter Salles volta aos cinemas após uma década de ausência com filme sobre assassinato na ditadura militar: ‘Todos os crimes devem ser punidos’
Com exibição neste domingo (1) no Festival de Veneza, 'Ainda estou aqui' é baseado em no livro de Marcelo Rubens Paiva sobre o desaparecimento de seu pai nos anos 1970

Era a história de uma família feliz no Rio de Janeiro, com direito a casa no Leblon, uma mesa farta para receber amigos, e cinco filhos criados com os pés na areia da praia carioca. Até que, em 20 de janeiro de 1971, a campainha do ex-deputado Rubens Paiva tocou, e aquela história se transformou num dos maiores exemplos do horror da ditadura brasileira.
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A partir de hoje, as circunstâncias do desaparecimento de Paiva e a busca por verdade de sua mulher, Eunice, serão lembradas com detalhes em todo o mundo. Estreia neste domingo, na competição do Festival de Cinema de Veneza, o filme “Ainda estou aqui”, primeiro longa-metragem de Walter Salles depois de uma década — os últimos foram “Jia Zhangke, um Homem de Fenyang” (2014) e “Na estrada” (2012).
Trata-se do retorno de um dos maiores cineastas do país, cuja obra é comumente lembrada pela abordagem de temas sociais, em geral com bastante reconhecimento internacional. “Central do Brasil” (1998) é o mais célebre de seus filmes e deu a Salles um Urso de Ouro em Berlim e uma indicação ao Oscar.
A nova produção é baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado, lançado em 2015. O elenco é encabeçado por Fernanda Torres (como Eunice) e Selton Mello (como Rubens). Fernanda Montenegro faz uma participação, como Eunice mais velha, reeditando a parceria de Salles com a estrela de “Central do Brasil”.
Por telefone, e-mail e mensagens ao longo da semana, Salles deu uma entrevista ao GLOBO, em que explica os anos de ausência e recorda sua própria relação pessoal com a família Rubens Paiva. Após Veneza, “Ainda estou aqui” passará pelos festivais de Toronto, Nova York e San Sebastián. É um filme original Globoplay e será lançado em breve nos cinemas brasileiros pela Sony, ainda sem data definida.
Há várias formas de entender “Ainda estou aqui”, mas ele tem um tópico central : é um filme sobre a ditadura. O quão importante é para você olhar para o passado e preservar a memória daquele período?
Faço parte de uma geração que chegou ao cinema depois de 21 anos de ditadura. Teria sido lógico me debruçar sobre esse período de trevas, mas o desastre do desgoverno Collor me levou a falar de um país em crise de identidade no início dos anos 90. Daí “Terra estrangeira” (filme lançado por Salles em 1995). O livro brilhante de Marcelo Rubens Paiva, um relato de maturidade em que ele entende que sua mãe havia sido a heroína silenciosa de sua família, me marcou muito. É um belíssimo retrato de uma mulher que se reinventa depois de uma tragédia, e é ao mesmo tempo um relato que desnuda a violência extrema da ditadura militar. O fato de narrar o político através do humano, do existencial, me emocionou profundamente no livro, e foi essa sensação que tentei reencontrar no filme.
Você era adolescente quando Rubens Paiva desapareceu. Você tem alguma lembrança dessa história?
Uma lembrança forte, por ser amigo de Nalu, irmã de Marcelo Rubens Paiva.Assim, passei parte da minha adolescência na casa que Rubens e Eunice alugavam no Leblon. Lembro de uma casa aberta aos amigos, luz entrando pelas janelas, dos ecos de vozes das diferentes turmas que se mesclavam naquela casa. Essa lembrança, essencialmente sensorial, é a que está na primeira parte do filme. Em certo sentido, essa casa era o contracampo de um país sob ditadura. Rubens transitava de um grupo ao outro. Era o tipo de pessoa que colocava um monte de adolescentes na parte de trás do carro, e lá íamos nós para o Maracanãzinho, ouvir Tony Tornado cantando “BR-3” no Festival Internacional da Canção. As discussões políticas, as músicas que se sucediam na vitrola da casa, o humor aguçado daquela geração, tudo aquilo me formou Nesse sentido, reviver essa casa na ficção foi como mergulhar em um passado que nunca me abandonou. Tentei reencontrar esse mundo da forma mais sincera e honesta possível, com a cumplicidade e o talento de Nanda (Fernanda Torres), de dona Fernanda (Montenegro), do Selton (Mello) e outros atores incríveis que tivemos nesse filme.
Um outro aspecto forte do filme é a construção do que se passa na casa. Cada personagem reage de uma maneira única aos acontecimentos. Como foi esse trabalho para criar a individualidade dentro de uma mesma família?
As lembranças que tenho de cada um são bem presentes justamente porque cada pessoa naquela casa era singular e original, à sua maneira. Não quis construir um mundo de personagens, e sim reencontrar aquelas pessoas com quem tive o prazer de conviver nesses anos formativos. Nisso os atores se tornaram também coautores, abraçaram essa possibilidade com desejo e integridade.
Você acredita que o tema da ditadura pode afastar algumas pessoas do cinema? Há poucos anos, houve uma campanha contra “Marighella”, do Wagner Moura. Hoje em dia, políticos e parte da sociedade têm sido mais vocais (em palanques ou redes sociais) ao minimizar os crimes cometidos pelo regime militar. Isso poderia afetar o desempenho de “Ainda estou aqui”?
O filme, como o livro, é construído por camadas. É sobre os ecos do país desejado que o golpe militar quis destruir — um país inventivo, onde pulsavam uma nova arquitetura, uma outra forma de educação, o Cinema Novo, a Tropicália. É também sobre a violência de um Estado que decidia quem deveria viver ou morrer. É sobre a história de uma família, e sobre aqueles que sofreram uma perda irreparável. E é finalmente sobre a reinvenção de uma mulher que nunca se dobrou, Eunice Paiva. Ela é o coração do filme.
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos foi extinta no fim do governo passado e recriada há quase dois meses pelo governo atual. Depois de ter se debruçado sobre a história do Rubens Paiva, o que você pensa sobre a comissão.
O mesmo que Eunice Paiva: que todos os crimes cometidos durante a ditadura devem ser identificados e punidos.
Você é um dos cineastas que melhor compreendeu e retratou a realidade social brasileira. É assim que você será lembrado para a História. Mas, numa década extremamente turbulenta para o país, você ficou sem lançar longas-metragens. Se a gente for além, o último filme seu que olhou diretamente para o Brasil foi “Linha de passe”, de 2008. O que aconteceu?
Sim, pensei nessa questão constantemente nesse período. Recusei projetos para tentar reencontrar algo que me dissesse respeito no meu país, um relato que eu não pudesse deixar de contar. O que me interessa no cinema é poder falar de personagens cujos conflitos pessoais reflitam de alguma forma algo mais amplo, os conflitos do próprio país. É essa superposição que move “Terra estrangeira”, “Central do Brasil, “Diários de motocicleta”, “Linha de passe”. Em 2015, Marcelo Rubens Paiva publicou o livro deslumbrante que é “Ainda estou aqui”, e Murilo Hauser e depois Heitor Lorega, roteiristas supertalentosos, começaram a adaptá-lo. Foi um processo de lenta decantação, que precisou de tempo para encontrar sua essência. Esse tempo dilatado acabou ajudando, porque pude amadurecer aspectos da adaptação que não eram simples. É um filme feito na subtração, na economia dos sentimentos. Essa forma contida que reflete Eunice, paradoxalmente, talvez seja o que lhe permita dialogar com as pessoas.
E você acha que pode acontecer de ficar tanto tempo sem filmar de novo?
Espero que não. Entre filmes de ficção, busco sempre rodar um documentário para reviver a possibilidade de filmar livremente, com uma equipe pequena, e manter vivo o desejo de cinema. Durante esse período realizei o documentário sobre Jia Zhang-ke, “Um Homem de Fenyang”, que foi importante para reanimar o desejo de filmar. Devo muito ao Jia, e também a todos os criadores que participaram do núcleo de roteiros no qual “Ainda estou aqui” foi desenvolvido.
Muita gente gosta de repetir por aí que o cinema está morrendo, que o streaming mudou os hábitos e que as salas nunca mais ficarão cheias como antigamente. Você concorda? Arriscaria dizer qual o futuro do cinema?
Em países em que existe uma percepção do cinema como instrumento de desvendamento do mundo, como na França, o cinema em sala está bem, obrigado. São países que mantêm uma relação direta entre cinema e educação. As salas francesas ficam lotadas de estudantes na parte da manhã. Os países em que o público continua frequentando as salas são sintomaticamente aqueles que regularam as plataformas de streaming desde a largada. No Brasil, as tentativas de regulação são, para ser gentil, tímidas. As salas pagam caro por isso. Um filme como “Diários” teve 12 milhões de espectadores no mundo, “Central do Brasil” teve seis milhões. Sei que isso não se reproduzirá, mas podemos pensar num mundo em que, somando as diversas janelas de um filme nas salas e nas diferentes plataformas, ele continue conversando com um público amplo. Olhando para o copo meio cheio, tivemos este ano filmes brasileiros em festivais importantes como Sundance, Berlim, Cannes, Locarno, Veneza. Teremos vários filmes em Toronto, no London Film Festival, no Festival de Nova York e Tóquio. Poucas cinematografias podem dizer o mesmo. E no ano que vem certamente teremos grandes filmes em Berlim e Cannes. Uma cinematografia só se torna obrigatória quando existe esse fluxo constante.
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