Internacional

Análise: Sugerido por Amorim, 'segundo turno' na Venezuela poderia beneficiar Maduro, mas chance de acontecer é mínima

Ideia foi aventada como uma possível solução da crise pelo assessor para assuntos internacionais do Palácio do Planalto, que disse ter levado a proposta ao presidente Lula

Agência O Globo - 14/08/2024
Análise: Sugerido por Amorim, 'segundo turno' na Venezuela poderia beneficiar Maduro, mas chance de acontecer é mínima
Nicolas Maduro

Duas semanas depois da realização da eleição venezuelana em 28 de julho — da qual o presidente Nicolás Maduro foi proclamado vitorioso —, o resultado do pleito, divulgado pelo órgão eleitoral alinhado ao governo, segue sendo questionado tanto pela oposição, quanto pela comunidade internacional. Em meio à crise que se instaurou no país, com protestos que levaram a uma onda de pressão com ao menos 25 mortos, 192 feridos e mais de 2 mil detenções, repetir a votação parece uma sugestão fora de cogitação. A ideia de um "segundo turno" foi aventada — em caráter informal — pelo governo brasileiro como uma possível solução da crise, mas analistas acreditam que seja pouco provável que isso se concretize, ainda que pudesse beneficiar o chavista.

Repressão: Com medidas para limitar redes sociais, Maduro quer transformar Venezuela em '‘Coreia do Norte do Caribe'

Denúncia: Procurador-geral diz que TPI recebeu relatos de 'vários casos de violência' na Venezuela e que acompanha situação 'ativamente'

Nesta terça-feira, o assessor para assuntos internacionais do Palácio do Planalto, Celso Amorim, disse ao jornal Valor Econômico que a sugestão estaria em estágio inicial, não tendo sequer sido discutida com Colômbia e México — países que, juntamente com o Brasil, buscam mediar o diálogo entre Maduro e candidato da oposição, Edmundo González Urrutia. A ideia foi levada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, embora o próprio já tivesse verbalizado algo na mesma linha anteriormente.

A proposta, porém, não parece estar nos planos nem de Maduro, nem da oposição, liderada por María Corina Machado (que não pôde concorrer por estar inabilitada politicamente por 15 anos). Do lado do chavismo, defende-se que o presidente foi o vencedor do pleito com 51,2% dos votos — mas sem divulgar, até agora, o escrutínio em detalhes, alegando que seu sistema foi hackeado (o que foi refutado pelo Centro Carter, que atuou como observador internacional). A oposição, por sua vez, garante que González Urrutia ganhou por ampla margem (de 67% dos votos, contra 30% de Maduro), alegando ter posse de 80% das atas de votação que comprovariam esse resultado.

— O que é isso? Eu ganho a partida de dominó e a repito? — disse o presidente em resposta a uma pergunta sobre o assunto dois dias após o pleito, acusando a oposição de tentar pressionar seu governo e manter de pé "a conspiração" para um golpe de Estado.

Aliados: Apoio de Rússia e China sustenta Venezuela perante demandas de EUA e Brasil originadas por eleição

Na avaliação da diretora da Divisão das Américas da ONG de direitos humanos Human Rights Watch, Juanita Goebertus, uma nova rodada de votações "implicaria desconsiderar que já houve uma eleição". Tal ideia é impensável, defende, uma vez que as eleições "não podem ser justas e livres se uma parte pode decidir refazê-las porque não gosta do resultado".

— Não há nada a se repetir — diz Goebertus ao GLOBO. — O que deve ser feito é publicar todas as atas e permitir auditorias independentes. O risco de não fazer isso é que os protestos continuem crescendo, sendo enfrentados com uma repressão brutal por parte do Estado venezuelano.

Mas, ainda assim, Goebertus ressalta que "com um sistema eleitoral totalmente cooptado pelo regime, não é impossível que tentem", visto que uma nova rodada também significaria que a oposição não teria a garantia de que os resultados que alegam ser verdadeiros seriam respeitados, tampouco os novos.

Entrevista ao GLOBO: 'Podemos entregar as atas eleitorais ao governo do Brasil', diz venezuelana María Corina Machado

Na mesma linha, o presidente da consultoria de análise política Poder y Estrategia, Ricardo Ríos, ouvido pelo jornal venezuelano independente Efecto Cocuyo, acredita que um "segundo turno" seria benéfico somente ao regime de Maduro. "É muito melhor para o governo, com tudo e com a narrativa que construiu, ter novas eleições do que para a oposição, embora eu insista, não acho que nenhum de nós receberá bem essa abordagem", disse Ríos ao portal. "A narrativa que o governo construiu de vitória, muito precária, não penetra nem na própria base, e repetir as eleições seria ir contra o que eles mesmos levantaram", acrescentou.

A consultora política Carmen Beatriz Fernández, também ouvida pelo portal venezuelano, reiterou que uma nova eleição também poderia ser uma "estratégia de Maduro para ganhar tempo" após recorrer ao Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) para "certificar" o resultado apresentado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE). "Não é, contudo, uma solução aceitável nem para a oposição, nem para o país, nem para a comunidade internacional que pede que os resultados sejam publicados e a partir daí entrar num processo de negociação", acrescentou.

Para a presidente do Escritório de Washington para a América Latina (WOLA, na sigla original), Carolina Jiménez Sandoval, mesmo que tanto a oposição quanto o governo venezuelano acordassem com a realização de novas eleições, "um cenário bastante improvável", não há no momento condições para uma eleição justa e democrática no país.

'Os latino-americanos têm que resolver': Sem citar EUA, Amorim critica 'interferências' em eleição na Venezuela

O primeiro motivo, destaca, é que o CNE está "parcializado a favor de Maduro", falhando em cumprir seus deveres como autoridade eleitoral. Além disso, as reações agressivas do governo contra os poucos observadores internacionais independentes e a ausência de uma observação eleitoral confiável também são pontos que dificultariam a aceitação de uma nova rodada de votação.

— A oposição e o próprio povo venezuelano não se sentiriam confiantes se não houver uma observação eleitoral independente, e não parece ser algo que o governo de Maduro estaria disposto a aceitar — disse Jiménez Sandoval ao GLOBO, acrescentando que realizar eleições enquanto há pessoas detidas por motivos políticos comprometeria ainda mais a legitimidade do processo.

Segundo uma pesquisa realizada pela consultoria Cati Meganálisis, divulgada pelo jornal venezuelano El Nacional nesta terça-feira, apenas 7 em cada 100 cidadãos do país acreditam que o resultado apresentado pelo órgão é confiável.