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'Super-humanos': clínica permite que militares amputados sonhem com retorno à linha de frente na Ucrânia

Com lista de espera de mais de 2 mil pessoas, local é referência para pessoas que querem retomar suas vidas e continuar a defender o país

Agência O Globo - 02/07/2024
'Super-humanos': clínica permite que militares amputados sonhem com retorno à linha de frente na Ucrânia
'Super-humanos': clínica permite que militares amputados sonhem com retorno à linha de frente na Ucrânia - Foto: Reprodução/internet

Oleksandr Ivanko, de 33 anos, quer voltar a dançar com sua mulher. É seu maior desejo. Ela o observa a distância, o suficiente para não escutar suas palavras. Mas também sonha em entrar em um carro e dirigir. E brincar com suas duas filhas, de 8 e 15 anos. Ivanko é militar profissional. É escorregadio com as palavras, de forma desconfiada e prudente. Não quer dar informações que comprometam seus colegas na linha de frente.

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Ele viveu em muitos lugares ao longo de sua vida, mas hoje mora em Poltava, no centro da Ucrânia. Ivanko perdeu a perna direita em 15 de abril: ele consertava o motor de um helicóptero em um posto militar no Leste do país quando um míssil Kh-59, um dos “demônios” russos, caiu a cerca de 20 metros de distância.

— Tenho muitos pesadelos, mas aceitei a situação, tenho uma boa moral — disse, sentado em uma cadeira de rodas, dentro do Centro Super-Humanos, na pequena cidade de Vinniki, nos arredores de Lviv, no Oeste da Ucrânia. Ivanko é um dos 70 pacientes dessa instituição de vanguarda, dedicada à fabricação e terapias com próteses e à cirurgia de reconstrução de militares e civis. A lista de espera está na casa dos milhares.

Em tempos de guerra, os dados precisos são cada vez mais escassos. Os números mais modestos sobre pessoas amputadas por causa da invasão russa estão em torno de 20 mil, segundo organizações locais, como a Pryncyp, dedicada à defesa dos direitos dos militares. Alguns estimam em 50 mil os amputados, e os desafios são muitos no tratamento dessas pessoas: primeiro pela gravidade dos ferimentos; depois, pelo acesso às próteses, limitado e caro — elas podem ir desde € 3 mil (R$ 18,2 mil)até mais de € 100 mil (R$ 607 mil), de acordo com o material e a tecnologia —; finalmente, pela dificuldade do tratamento e da reabilitação. No caso dos soldados, existe a complicação sobre o possível retorno à linha de frente.

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Nem todas pessoas que perdem uma parte de seus corpos ficam imobilizadas, assim como muitos dos feridos não perdem seu senso de humor. Ivanko, que antes da Ucrânia serviu no Leste do Congo, é um bom exemplo. Ao ser questionado o que sentiu quando teve a perna destroçada, foi direto:

— Me dei conta, pouco depois, que ao invés de um carro com câmbio manual teria que escolher um automático.

Mais sério, ele fala sobre seu objetivo de voltar a caminhar, e de voltar à linha de frente.

— O comandante da minha brigada disse que está me esperando — afirmou.

O Centro Super-Humanos, nome escolhido para elevar a moral de seus pacientes, e se tornar mais atraente a doadores estrangeiros, iniciou os trabalhos em abril de 2023, através do empresário Andrey Stavnitser, co-fundador do operador portuário TIS, com o apoio da fundação do investidor americano Howard Buffett. A iniciativa queria tornar possível algo quase impossível: atender um número elevado de cidadãos mutilados em tão pouco tempo.

O Estado ucraniano já oferece uma assistência protética a seus militares, com uma resolução recente prometendo acesso rápido a modelos funcionais, de até € 55 mil (R$ 334,1 mil), mas não é o suficiente.

Para ser um dos super-humanos nas instalações de Vinniki é necessário preencher uma solicitação e esperar um telefonema. Todas as sextas-feiras, cerca de 10 pacientes terminam suas terapias e conversam com outros que estão iniciando a jornada. Cerca de 700 pessoas estão em meio ao processo de entrada no centro, e outras 2,5 mil aguardam a vez de serem chamadas.

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Isso é o que fez Pavlo Romanovskii, de 34 anos e natural de Dnipro, no Leste ucraniano. Ele está sentado sobre o banco de um aparelho de musculação, com o que restou de sua perna, amputada acima de seu joelho, se movendo de cima para baixo. Ele fecha os olhos e repete o gesto, revelando o sofrimento do execício.

Fala, sem perder o sorriso, da maldita “Lei de Murphy” no dia 22 de julho de 2023, quando o único projétil a atingir sua posição, nos arredores de Adriivka, no Leste, caiu a menos de um palmo de distância. Ao contar os detalhes, pega um bloco de notas e desenha a arma e a munição que lhe arrancaram um pedaço da perna. Mostra um vídeo de como ficou pouco depois, com a perna e o rosto cobertos. Ele é um exemplo clássico de ferido de guerra: cicatrizes por todo o peito, danos ao sistema auditivo e 27 cirurgias.

— Não me sinto um incapaz — afirma o militar, dono de uma longa barba.

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Logo se deu conta de que precisava estar em forma, e que deveria ir à academia e se preparar para voltar a fazer o que sempre gostou: escalar, andar de moto e de kitesurf. Mas ainda falta um pouco até que retome a rotina. Sua mulher e sua filha de cinco anos são incentivo para o presente, mas ele reconhece que ainda está longe de sua “vida anterior”. Precisa de mais tempo para controlar a prótese — ele hoje a ajusta com naturalidade e agarra um peso pequeno com o braço esquerdo para caminhar pela sala. É difícil, mas mesmo assim ele quer retornar à linha de frente.

— O farei por minha filha e por todas as crianças da Ucrânia — disse. Sua brigada, revela, já aceita homens amputados.

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De acordo com a lei de mobilização aprovada em abril, homens com mutilações bilaterais em qualquer nível ou unilateral da extremidade inferior acima do terço superior da perna estão isentos. Mas na prática, as Forças Armadas da Ucrânia, superadas numericamente pelos russos, precisam multiplicar seus efetivos, algo que os veteranos sabem bem. E há muitos postos de retaguarda que podem ser desempenhados por pessoas com próteses.

Oleksandr Kutsan, de 36 anos, vindo de Pereyslav, teve as duas pernas destroçadas em Lyman, em março de 2023. Ele conta, com certa ironia, que precisou ensinar a um novato de 19 anos a fazer torniquetes. Foram necessários quatro meses até que conseguisse controlar as próteses.

— É difícil manter o equilíbrio com as duas — afirmou.

Kutsan, que usa uma cadeira de rodas, não quer voltar ao campo de batalha. Ele colabora com o Centro Super-Humanos, apresentando o local às visitas, dentre outras funções. Sua vida mudou radicalmente, mas uma pessoa continua a fazê-lo rir. “É minha motivação”, afirma, ao falar de sua filha.

Talvez Kutzan seja uma exceção entre os que, apesar da dor e limitações, enfrentam a nova condição de “super-humanos” e retornam às linhas de frente. Albán Torres, de 43 anos, nascido na Colômbia, não pensa em nada que não seja o regresso ao seu batalhão, formado por um contingente internacional que reforça as tropas locais.

— O dinheiro não é tudo — conta, antes de relatar como ficou ferido por um drone chamado por ele de “kamikaze” na região de Donetsk; como ele perdeu parte de sua perna direita, foi baleado no ombro e como lhe feriram os ouvidos — ele está experimentando um aparelho novo, mas ainda diz escutar muitos “ruídos” —; como pediu a seus companheiros que lhe dessem um tiro na cabeça para que morresse ali mesmo. Enquanto faz seus exercícios, o combatente diz que, no momento, “se deu conta de que seria um peso”.

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Ele foi levado a um hosópital de Konstantinivka, e agora está há duas semanas praticando para tentar deixar a cadeira de rodas. Torres, militar com 20 anos de experiência, tem família na Colômbia e a mulher na Espanha, e é direto quando foi questionado sobre a parte mais difícil em todo o processo.

— A vontade da pessoa querer se levantar de novo.