Internacional

'Ponte para a Otan', pacto de segurança entre Ucrânia e EUA traz boas notícias a Kiev, mas evoca velhos fantasmas

Acordo anunciado em meio à reunião do G7 estabelece parceria importante para fortalecer as capacidades ucranianas, mas evita compromissos mais contundentes

Agência O Globo - 14/06/2024
'Ponte para a Otan', pacto de segurança entre Ucrânia e EUA traz boas notícias a Kiev, mas evoca velhos fantasmas

Anunciado com pompa pelo governo de Joe Biden, e celebrado pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, como uma “ponte” para a adesão da Ucrânia à Otan, principal aliança militar do Ocidente, o novo pacto de segurança bilateral, com prazo de dez anos, firmado nesta quinta-feira, durante reunião do G7, na Itália, foi apresentado uma excelente notícia para Kiev.

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Segundo comunicado da Casa Branca, o pacto “reflete a parceria estreita entre as duas democracias”,e envia um “sinal contundente de apoio para a Ucrânia agora e para o futuro”. A premissa básica é, de acordo com o texto e com as declarações de Biden, feitas ao lado de Zelensky, é permitir que os ucranianos “fortaleçam as suas capacidades de se defenderem agora e de impedir agressões futuras”, um claro recado à Rússia de Vladimir Putin (e eventuais sucessores).

O ponto central é permitir um grau de autossuficiência para Kiev, através da cooperação militar no âmbito da Otan e de forma bilateral, com a adoção de equipamentos de treinamento e de inteligência no modelo ocidental. A ênfase nos padrões da organização, distintos dos das Forças Armadas ucranianas, vai na linha da construção da “ponte” para a eventual adesão — a uniformidade das operações é talvez a principal marca da aliança. Esse ponto é visto por analistas como uma grande oportunidade de um salto tecnológico para o setor de defesa ucraniano a médio e longo prazo.

Há uma preocupação com a retomada da capacidade industrial ucraniana, além das infraestruturas vitais danificadas pela guerra — ao G7, reunido na Itália, Zelensky cobrou a elaboração de um plano para a reconstrução de seu país, citando como exemplo o Plano Marshall, elaborado pelos EUA para ajudar a Europa a se reerguer após após a Segunda Guerra Mundial. No encontro, os líderes aprovaram um empréstimo de US$ 50 bilhões (R$ 268,13 bilhões)a Kiev, financiados com ativos russos.

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No campo político, o pacto faz promessas para “acelerar a integração Euro-Atlântica”, apontando para a potencial entrada da Ucrânia não apenas na Otan, mas também na União Europeia, além de buscar uma paz “justa” para o conflito e continuar a impor o “custo” à Rússia pela “agressão” militar.

— Assinamos o mais contundente acordo entre Ucrânia e EUA desde a nossa independência. [....] Esse é um acordo de segurança e de proteção da vida humana — disse Zelensky, ao lado de Biden na Itália. —Ele declara que os EUA apoiam a futura adesão da Ucrânia à Otan, e reconhece que nosso acordo de segurança é uma ponte para a entrada da Ucrânia na Otan.

Euforia e ceticismo

Longe das câmeras, o texto final pode não ter agradado tanto os ucranianos.

A começar por não ser um pacto de segurança como os mantidos com Israel ou Coreia do Sul, que preveem ações de defesa mútua — ou seja, que os EUA defendam militarmente essas nações. Biden reiterou que não enviará tropas à Ucrânia e que não usará suas forças para defender os ucranianos, mas sim permitirá que o país se defenda sozinho e tenha capacidade militar.

O texto não prevê quanto dinheiro os EUA pretendem destinar na próxima década, tampouco uma “linha do tempo” para o acesso à Otan — para o país ser aceito, é necessário o aval dos atuais 32 integrantes, nem todos afáveis à ideia de Kiev se juntar a eles. Afinal, com esse 33º membro, eles seriam obrigados a enviar soldados ao front ucraniano caso a Rússia decidisse lançar uma nova guerra, seguindo o compromisso central da aliança: "um ataque contra um é um ataque a todos"

O pacto foi firmado em nível executivo, sem garantias de que outros presidentes seguirão seus termos, ao contrário do firmado com Israel, que foi discutido e aprovado pelo Congresso . Caso Donald Trump seja eleito em novembro, ele poderia rasgar o texto — como o fez com o acordo internacional sobre o programa nuclear do Irã, em 2018— e trocá-lo por mais uma de suas “grandes barganhas”.

Trump está cada vez mais cético sobre a ajuda militar a Kiev, que supera os US$ 100 bilhões (R$ 536 bilhões), já contando com o recente pacote aprovado pelo Congresso, e tem sinalizado que poderá cortar os envios de dinheiro e armas.

No ano passado, em um programa da rede CNN, ele não se comprometeu a apoiar a Ucrânia caso volte à Casa Branca, e algumas raposas políticas de Washington cravam que o ex-presidente ainda se ressente com Zelensky por seu envolvimento (involuntário) no escândalo que levou ao primeiro julgamento de impeachment do republicano, em 2020. Um acordo nos moldes do que foi firmado por Biden depende de um compromisso bipartidário para dar certo, algo que não existe hoje nos EUA.

O líder ucraniano também não parece ser um grande fã de Trump: ao jornal Guardian, em junho, Zelensky disse que o republicano seria um “presidente perdedor” caso firmasse um acordo com Putin..

— Acho que ele [Trump]realmente não entende que Putin não vai parar, que quer nos ocupar completamente. É por isso que acho que Trump não conhece Putin — disse Zelensky, em uma outra entrevista, dessa vez à CNN, em abril.

Frustrações passadas

A ausência de garantias palpáveis ainda evoca junto aos ucranianos fantasmas de antigas promessas descumpridas. A principal delas foi chamado Memorando de Budapeste, de 1994, pelo qual Kiev concordou em delegar o arsenal nuclear herdado da recém-extinta União Soviética — cerca de cinco mil ogivas — para a Rússia. Em troca, recebeu garantias de que não seria atacada por Moscou, pelos EUA ou pelo Reino Unido. Além da Ucrânia, Cazaquistão e Bielorrússia entregaram seus arsenais.

O texto previa que, em caso de agressão injustificada por uma das três potências nucleares aos signatários, eles poderiam recorrer ao Conselho de Segurança da ONU, onde russos, americanos e britânicos têm poder de veto. A fragilidade do memorando se tornou explícita em fevereiro de 2014, quando a Rússia, através de milícias aliadas, iniciou uma guerra no Leste ucraniano e anexou unilateralmente a Crimeia. A invasão total, oito anos depois, foi mais um argumento para os céticos.

— Nós abrimos mão de nossa capacidade [nuclear] em troca de nada — disse ao New York Times, dias antes do início da guerra, em 2022, Andriy Zaharodniuk, ex-ministro da Defesa do próprio Zelensky, de 2019 a 2020. — Agora, toda vez que alguém nos pede para assinar um pedaço de papel, a resposta é “muito obrigado, nós já tivemos um desses há algum tempo”.