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Viúva do líder do Estado Islâmico diz que tentou fugir do marido e nega participação nas brutalidades cometidas pelos terroristas

Umm Hudaifa, primeira mulher de Abu Bakr al-Baghdadi, diz que usava identidade falsa e era proibida de usar tecnologia; conta ainda sobre radicalização do jihadista, que antes era 'religioso, mas não extremista'

Agência O Globo - 11/06/2024
Viúva do líder do Estado Islâmico diz que tentou fugir do marido e nega participação nas brutalidades cometidas pelos terroristas
Viúva do líder do Estado Islâmico diz que tentou fugir do marido e nega participação nas brutalidades cometidas pelos terroristas - Foto: Reprodução / internet

O ambiente barulhento da penitenciária em Bagdá, no Iraque, contrasta com o silêncio que recai sobre a área da biblioteca. Ali, por quase duas horas, Umm Hudaifa, viúva e primeira mulher do líder do Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ISIS), Abu Bakr al-Baghdadi, partilhou histórias sobre seu relacionamento e a vida com o terrorista, o que levou sua radicalização do marido até então 'religioso, mas não extremista', as dúvidas iniciais sobre envolvimento em grupos jihadistas e o discurso no qual ele se apresentou pela primeira vez como chefe do autoproclamado "califado" em julho de 2014.

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Casada com al-Baghdadi durante o domínio do ISIS sobre partes do Iraque e da Síria, Hudaifa está detida em prisão iraquiana enquanto é investigada por crimes relacionados com terrorismo e seu papel no grupo — um processo judicial foi instaurado por mulheres yazidis, uma minoria religiosa, raptadas e estupradas por membros do Estado Islâmico, na qual a acusam de conluio na escravização sexual de meninas e mulheres. A viúva, que se apresentou como uma vítima que tentou escapar do marido, negou estar envolvida em qualquer atividade brutal.

Hufaida nasceu em 1976 em uma família iraquiana conservadora e casou-se com Ibrahim Awad al-Badri, que mais tarde ficaria conhecido sob o pseudônimo de Abu Bakr al-Baghdadi, em 1999. Ele tinha acabado os estudos da Sharia (lei islâmica) na Universidade de Bagdá. Hudaifa descreveu à rede britânica BBC que o marido, na época, era "religioso, mas não extremista... Conservador, mas de mente aberta." Tudo mudou em 2004, um ano após a invasão do Iraque liderada pelos EUA.

Al-Baghdadi foi detido e enviado para o centro de detenção Camp Bucca, onde fico preso por cerca de um ano junto com outros homens que posteriormente emergiram como figuras importantes no ISIS e de outros grupos jihadistas. Hudaifa disse que, nos anos seguintes à detenção, ele ficou "mal-humorado e propenso a explosões de raiva". Outras pessoas que conheceram o jihadista dizem que ele esteve envolvido com a organização terrorista al-Qaeda antes de passar pelo centro, mas para Hudaifa a prisão foi o ponto de virada para uma visão cada vez mais extremista do marido.

— Ele começou a sofrer de problemas psicológicos — contou à BBC e, ao ser questionada sobre o motivo, respondeu: — [Al-Baghdadi] tinha sido exposto a algo que "você não consegue entender".

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Hudaifa explicou que, apesar do marido não ter dito explicitamente, "durante a detenção ele foi sujeito à tortura sexual". Imagens de uma prisão também administrada pelos EUA no Iraque, a Abu Ghraib, que vieram à tona naquele mesmo ano mostravam prisioneiros sendo forçados a simular atos sexuais e a adotar poses humilhantes, bem como abusos sexuais cometidos contra prisioneiros e prisioneiras por parte de soldados americanos e violações com objetos como cassetetes e arames. A BBC entrou em contato com o Departamento de Defesa dos EUA para apresentar as alegações da viúva, mas não obteve retorno.

Sem tecnologia e identidades falsas

Hudaifa contou que começou a questionar o marido se ele pertencia a um grupo militantes.

— Eu costumava revistar a roupa dele quando ele voltava para casa, quando tomava banho ou quando ia dormir. Até revistava o corpo dele em busca de hematomas ou ferimentos... Estava perplexa — disse a mulher, afirmando que, na época, disse a al-Baghdadi, "Você se desviou do caminho": — Isso o levou a um ataque de raiva.

A vida transformou-se: a viúva descreveu à rede britânica que ela e o terrorista mudavam de casa com frequência e tinham identidades falsas. Hudaifa contou que estava isolada do mundo e que al-Baghdadi não a deixava assistir televisão ou usar qualquer outra tecnologia como celulares desde 2007. O marido também se casou com uma segunda mulher, o que a teria levado, segundo seu relato, a pedir o divórcio. Por não ter concordado com a condição do marido de que ela abdicasse dos filhos, permaneceu no relacionamento.

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Com o avanço da guerra sangrenta que tomou conta do Iraque entre os anos de 2006 e 2008, Hudaifa disse que não havia mais dúvidas sobre o marido integrar ou não um grupo jihadista sunita. Em 2010, ele chegou ao cargo de líder do Estado Islâmico do Iraque. Formado em 2006, era um grupo guarda-chuva de organizações jihadistas iraquianas.

— Nos mudados para a zona rural de Idlib, na Síria, em janeiro de 2012, e então ficou absolutamente claro para mim que ele era o emir [líder] — explicou a viúva.

O Estado Islâmico do Iraque (ISIS), criado em 2013 e que cresceu como um braço da al-Qaeda no país, foi um do grupos que mais tarde uniu forças para formar o grupo mais amplo do Estado Islâmico que, após romperem laços, declarou um califado — significado de sucessão, em árabe, é um estado islâmico governado de acordo com a Sharia por alguém que é considerado o representante de Deus na Terra — em 2014.

Naquela época, Hudaifa contou que o marido começou a usar um vestido afegão, deixou a barba crescer e passou a carregar uma pistola. À medida que a segurança se deteriorava no noroeste da Síria, o casal deslocou-se mais uma vez, dessa vez para o leste, rumo à cidade Raqqa, que mais tarde foi considerada a capital do "califado". Era ali que os dois moravam quando a Hudaifa viu, pela primeira vez, o marido na televisão.

O discurso na TV e a brutalidade do grupo

A viúva contou que, apesar de ter sido proibida de qualquer contato com a tecnologia, eles tinham uma televisão em casa e que costumava ligá-la quando al-Baghdadi "não estava". Para ele, o aparelho não funcionava. Era um dia de verão, em 2014, quando ela ligou a TV e teve "uma grande surpresa". Na tela, o marido discursava na Grande Mesquista de al-Nuri, na cidade de Mossul, no norte do Iraque, apresentando-se como chefe do autroproclamado califado, apenas algumas semanas após os terroristas terem tomado o controle da região.

As imagens de al-Baghdadi com suas vestes pretas e sua longa barba exigindo lealdade dos muçulmanos rodaram o mundo e marcaram um momento chave para o grupo. Hudafia explicou à rede que, dias antes, o marido enviou um guarda para buscar dois dos seus filhos pequenos, sob o argumento de que "iram fazer uma viagem para ensinar os meninos a nadar". Ela, então, ficou chocada ao descobrir que as crianças estavam em Mossul com o pai.

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A brutalidade dos grupos que se uniram para formar o Estado Islâmico já era conhecida, mas em 2014 e 2015 as atrocidades tornaram-se, segundo a BBC, mais generalizadas e horríveis. Uma equipe de investigação da Organização das Nações Unidas (ONU), citada pela rede britânica, disse ter encontrado provas de que o grupo cometeu genocídio contra a minoria religiosa Yazidi do Iraque: quando os terroristas chegaram ao seu território, separaram os homens e os meninos mais velhos e massacraram até dez mil deles. O EI também teria cometido crimes contra a humanidade, incluindo homicídio, tortura, rapto e escravização. Alguns vídeos de decapitação e execução foram publicados nas redes sociais.

O repórter da BBC disse que pressionou Hudaifa quanto a suas opiniões na época sobre o grupo, uma vez que muitas mulheres alegavam que não entendiam o que estava acontecendo. A viúva afirmou que não conseguia ver as imagens e descreveu a atuação do grupo como "um choque enorme, desumano". Disse ainda que "derramar sangue injustamente é uma coisa horrível e nesse sentido ultrapassaram todos os limites".

Ela contou que questionou o marido sobre o fato de ter "sangue de pessoas inocentes nas mãos" e que disse a ele que "de acordo com a lei islâmica há coisas que poderiam ter sido feitas, como orientá-los para o arrependimento." A viúva também relatou que al-Baghdadi costumava se comunicar com os líderes do grupo em seu notebook, que ficava trancado em uma pasta.

— Tentei entrar no computador para saber o que estava acontecendo, mas eu era analfabeta em termos tecnológicos e ele pedia-me sempre uma senha — afirmou.

Disse ainda que, até onde sabia, o marido "não participou em nenhuma luta ou combate", e que ele estava em Raqqa quando o Estado Islâmico assumiu o controle de Mossul, para onde ele teria viajado mais tarde para seu discurso. Pouco depois da transmissão, a filha de 12 anos do casal, Umaima, foi casada com um amigo de al-Baghdadi, Mansour, a quem foi confiado o cuidado dos assuntos da família. Hudaifa disse à BBC que foi contra a união.

Uma fonte de segurança iraquiana, citada pela rede britânica, disse que a criança já tinha sido casa uma vez aos 8 anos com um porta-voz sírio do Estado Islâmico. A união, porém, era arranjada para conferir ao homem passe livre para entrar na casa na ausência de al-Baghdadi e o relacionamento não era sexual.

Vítima ou cúmplice?

Durante a entrevista, Hudaifa não levantava a cabeça. Ela estava vestida de preto e mostrava apenas uma parte do rosto, que ia do nariz ao queixo. Ainda durante entrevista, ela contou que tentou fugir, mas homens armados em um posto de controle recusaram-se a deixá-la passar e a mandaram de volta para casa. Em 2014, ela deu à luz sua segunda filha, Nasiba. Na mesma época, Mansour passou a trazer meninas e mulheres Yazidi para casa, com idades que variavam entre 9 e 30 anos. Hudaifa disse que ficou chocada e "sentiu vergonha".

Entre as mulheres levadas havia duas meninas, identificadas pela BBC pelos nomes fictícios Samar e Zena. A viúva afirmou que elas só ficaram na sua casa em Raqqa por alguns dias antes de serem transferidas. A família depois mudou-se para Mossul e Samar reapareceu, ficando com eles por cerca de dois meses. A rede britânica conseguiu localizar o pai da vítima, Hamid, que ficou emocionado ao se lembrar do momento em que a menina foi raptada na cidade de Khansour, em Sinjar. Zena, a outra menina, é sua sobrinha e acredita-se que esteja presa no norte da Síria. Sua irmã, Soad, não conheceu Hudaifa, mas foi escravizada, estuprada e vendida sete vezes.

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Tanto Hamid como Soad entraram com uma ação civil contra Hudaifa por conivência no sequestro e escravização das meninas da minoria religiosa. Para eles, a viúva de al-Baghdadi está longe de ser a vítima indefesa que se apresenta e pedem a pena de morte.

— Ela foi responsável por tudo. Ela fez as seleções: esta para servi-la, aquela para servir o marido... e minha irmã era uma dessas meninas — disse Soad à BBC, que baseou as alegações em testemunhos de outras vítimas que retornaram para suas casas. — Ela é a esposa do criminoso Abu Bakr al-Baghdadi e é uma criminosa como ele.

Ao ser confrontada com o relato da irmã de Zena, Hudaif disse não negar que o marido era um criminoso, mas afirmou que "está muito arrependida pelo que aconteceu". Ela também negou as acusações contra ela.

À rede britânica, a viúva também disse que conheceu, em janeiro de 2015, a agente humanitária norte-americana sequestrada, Kayla Mueller, que foi mantida como refém durante um ano e meio e acabou morrendo em cativeiro. As circunstâncias da morte ainda não são conhecidas. O Estado Islâmico afirma que ela foi morta em um ataque aéreo jordaniano, enquanto os EUA contestam essa versão. Uma fonte de segurança disse à BBC que ela foi morta pelo grupo terrorista.

Prisão

Em 2019, as forças americanas invadiram o local onde al-Baghdadi estava escondido no noroeste da Síria com alguns membros de sua família. O líder do grupo detonou um colete explosivo quando encurralado em um túnel, mantando a si mesmo e a dois filhos. Duas de suas quatro esposas foram mortas em um tiroteio. Hudaifa, porém, não estava lá. Viva na Turquia com um nome falso, onde foi presa em 2018.

A viúva foi extraditada de volta ao Iraque em fevereiro deste ano e, desde então, está detida enquanto as autoridades investigam seu papel no grupo. A filha mais velha de Umaima está na prisão com ela. A outra está em um centro de detenção juvenil, enquanto um de seus filhos foi morto em um ataque aéreo russo na Síria. Outro morreu com o pai no túnel, e o caçula está em um orfanato.