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Filme com Caio Blat e Luisa Arraes transporta sertão de Guimarães Rosa para a favela do presente

Guel Arraes, Bia Lessa, Sandra Kogut e Pedro Bial falam sobre os desafios de adaptar o autor mineiro de 'Grande sertão: veredas'

Agência O Globo - 06/06/2024
Filme com Caio Blat e Luisa Arraes transporta sertão de Guimarães Rosa para a favela do presente
Filme com Caio Blat e Luisa Arraes transporta sertão de Guimarães Rosa para a favela do presente - Foto: Reprodução/internet

“A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”, descreve o jagunço Riobaldo em um dos mais famosos trechos do clássico romance “ Grande sertão: veredas” (1956), de João Guimarães Rosa (1908-1967). Coragem, por sinal, pode ser a palavra que melhor define o impulso de cineastas que decidiram enfrentar a dor e a delícia de adaptar obras do mineiro, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos e dono de uma prosa muito particular, que atrela regionalismo a temas universais.

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Hoje, entra em cartaz nos cinemas do país mais um destes exemplos. “Grande sertão” tem direção do cineasta Guel Arraes, que divide o roteiro com Jorge Furtado, e traz o sertão de Rosa para uma favela dos dias atuais, mas se mantendo fiel ao texto original. Nesta aguardada versão, a luta de jagunços vira conflito entre policiais e criminosos, com foco na trama central: Riobaldo ( Caio Blat) entra para o crime por amor — nunca revelado — pelo bandido Diadorim ( Luísa Arraes), que guarda um grande segredo. É a mais nova tentativa de levar às telas a obra prima do autor — em 1965, houve um longa e, em 1985, uma série da TV Globo.

Não é de hoje que a obra de Guimarães Rosa é adaptada para o cinema, em filmes como “A hora e a vez de Augusto Matraga” (1965), de Roberto Santos; “Cabaret mineiro” (1984), de Carlos Alberto Prates Correia; “Outras estórias” (1999), de Pedro Bial; e “Mutum” (2007), de Sandra Kogut.

— Guimarães Rosa sempre foi meu autor brasileiro preferido, mas demorei a ler “Grande sertão: veredas”. Passei por aquele perrengue de pegar, largar e pegar de novo. Mas, quando li, fiquei louco — conta Guel, que tem no currículo outra adaptação de clássico, “O auto da compadecida” (2000), de Ariano Suassuna. — Já fazia cinema e pensava em fazer uma adaptação, mas me faltava oportunidade e coragem.

Onde o estado não chega

A coragem — olha ela aí de novo — veio com o tempo e a experiência. Em 2017, após verem o clássico revisitado nos palcos teatrais numa celebrada montagem de Bia Lessa, Guel e Jorge decidiram arriscar, acompanhados da produtora artística Flávia Lacerda.

Já no primeiro encontro, tomaram duas decisões fundamentais: preservar o texto ao máximo e, ao mesmo tempo, transpor a história para outro cenário.

— Não queríamos fazer uma mera ilustração da história. Pensamos que poderíamos contribuir para a obra e decidimos pela transposição para o cenário urbano e presente — lembra o diretor. — Se você pega a favela ou o cangaço, tem um lugar onde o Estado não chega, em que a comunidade se auto-organiza a ferro e fogo.

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O diretor destaca a revolução promovida pela literatura de Guimarães Rosa, que consegue ser ao mesmo tempo fantástica e realista, épica e introspectiva, regionalista e universal. Para ele, o maior desafio foi honrar a prosódia do escritor, especialmente nas cenas do filme que trazem momentos não presentes no livro.

Além de sua montagem teatral de “Grande sertão: veredas”, Bia Lessa tem mais relações com a obra de Guimarães. Em 2006, coube a ela montar a exposição que inaugurou o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, toda formada por palavras presentes no clássico do escritor.

— Para mim, o mais importante na obra de Rosa é uma questão metafísica. Quando você mostra a imagem, de alguma forma está dizendo “aquilo é aquilo”, enquanto o que ele propõe é que cada pessoa descubra o seu próprio sertão — destaca a diretora, que lança em agosto sua própria adaptação de “Grande sertão: veredas” para os cinemas, “O diabo na rua, no meio do redemunho”. — Este foi o embate que tive na produção: como fazer um filme que é imagem o tempo inteiro sem empobrecer o livro?

Adaptação sigilosa

Sabendo muito bem do peso que é adaptar uma obra de Guimarães Rosa, Sandra Kogut tentou “esconder” isso de sua equipe em “Mutum”, baseado no livro “Campo geral”, lançado pelo escritor em 1964.

— Ninguém tinha o roteiro, ninguém nem sabia que era Guimarães Rosa. Mantive segredo, pois tinha receio de intimidar todo mundo. E acho que acabamos sendo muito fiéis a ele — lembra a cineasta carioca, que vagou pelo sertão de Minas Gerais à procura de sua história e de um elenco amador. — Não queria trabalhar com atores que fossem decorar um texto. Principalmente para os papéis das crianças. Queria encontrar pessoas que tivessem terreno comum com aqueles personagens.

Em seu circuito de première em festivais antes de o filme chegar ao circuitão de cinema, Guel Arraes foi premiado em novembro passado no Tallinn Black Nights Film Festival, na Estônia, pelo trabalho como diretor em “Grande sertão”. Uma primeira recompensa, depois de um período dedicado ao longa que ele descreve como “cinco anos de buscas, de alegrias e de desesperos”.

Quem também foi conquistado pela adaptação de Guel foi o apresentador, escritor e cineasta Pedro Bial, que, em 1999, dirigiu “Outras estórias”, filme organizado em episódios que se baseia em contos de Guimarães Rosa presentes no livro “Primeiras estórias” (1962).

— Confesso que fui com um pé atrás assistir a “Grande sertão”, do Guel e do Jorge, e adorei. É um filme que vem para ficar. Foram muito bem-sucedidos. Conseguiram melhor do que eu a proposta de manter o texto original intacto. É espantoso — elogia Bial. — Qualquer tipo de adaptação mais ousada de Guimarães Rosa corre o risco de trair a obra. É uma literatura tão bem resolvida que, no processo, é muito mais fácil perder do que acrescentar. Eu dizia que não queria adaptar a literatura ao cinema, mas sim adaptar o cinema à literatura de Rosa.

O apresentador lembra que, quando decidiu criar sobre as “Primeiras histórias”, ouviu de um amigo: “Você vai tirar o tom operístico e trocar pelo coloquial?”

— Eu disse: “Não, vou manter o tom operístico e fazê-lo tão acessível como o coloquial.” Como um filme de episódios, acredito que acertei em algumas coisas e errei em outras — diz Bial, que contou com nomes como Paulo José, Enrique Diaz, Marieta Severo e Antônio Calloni.

De família mineira, como Guimarães Rosa, o cineasta Sérgio Rezende conta que nunca sentiu a dificuldade retratada por muitos na leitura do autor. Talvez, imagina ele, por ter uma familiaridade com fala dos personagens. O realizador lembra que, após emendar as filmagens de “Zuzu Angel” (2006) e “Salve geral” (2009), começou a sonhar em dirigir sua própria adaptação de “Grande sertão: veredas”, mas que precisou abrir mão do desejo em razão dos altos custos para obter os direitos da obra.

No final de maio, Sérgio lançou, no Canal Brasil, o documentário “Sertão sertões” (2024), em que expõe seu fascínio pela paisagem semiárida a partir da influência de duas obras literárias em sua vida: “Grande sertão: veredas” e “Os sertões” (1902), de Euclides da Cunha. O cineasta lembra que o sertão permeia, inclusive, boa parte de sua filmografia, sendo uma paisagem presente de “Lamarca” (1994), “Guerra de Canudos” (1997) e “Quase nada” (2000). Os dois primeiros foram rodados no interior da Bahia, enquanto que o último em Minas Gerais.

— Sem fazer uma adaptação dos dois livros, tive o impulso de percorrer os caminhos que estes escritores tinham feito quando escreveram estas obras — destaca. — Rosa teve uma mítica viagem, com boiadeiros, em que ia anotando informações que depois usaria em “Grande sertão: veredas”. Decidi fazer essa viagem. Peguei um carro, saí do Rio e fui até o norte de Minas em busca desse sertão arcaico.

Time de corajosos

A verdade é que, desde que os irmãos Geraldo Santos Pereira e Renato Santos Pereira dirigiram “Grande sertão”, em 1965, não se passou uma década sem que outros realizadores também investissem em adaptações de Guimarães Rosa para as telas de cinema.

Além dos citados anteriormente, outros realizadores formam o time de corajosos que transpuseram a obra do mineiro para o audiovisual. Paulo Thiago realizou “Sagarana, o duelo”, adaptação do conto “O duelo” exibido no Festival de Berlim de 1974. E, após “Cabaret mineiro”, vencedor do Kikito de melhor filme no Festival de Gramado de 1981, Carlos Alberto Prates Correia lançou ainda “Noites do sertão” (1983), baseado no texto “Buriti”, presente no livro “Corpo de baile”, que Rosa lançou em 1956. Há ainda Nelson Pereira dos Santos, com “A terceira margem do rio” (1994), Vinícius Coimbra, com “A hora e a vez de Augusto Matraga” (2011), e Luiz Henrique Rios, com “Meus dois amores” (2015).

Bia Lessa dá uma síntese da atração deste desafio:

— A obra de Guimarães impõe milhões de desafios de adaptação. Mas também oferece milhões de possibilidades.