Geral
Crítica: Contos de 'Copacabana Dreams' mostram que tudo é possível no 'bairro que nunca dorme'
Livro de Natércia Pontes registra a rotina dos moradores de um lugar icônico, para o bem e para o mal

Em pleno janeiro, uma senhora atravessa a Praça do Lido — de frente para a Praia de Copacabana — usando um casaco de plumas. O relacionamento de duas irmãs parece à beira do abismo enquanto um ovo cozinha em borbulhas. Encontros contorcionistas e perversões se empilham. Publicado em 2012 pela extinta Cosac Naify, “Copacabana dreams”, de Natércia Pontes, retorna às livrarias e faz mais do que atestar a força de suas 63 histórias.
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Após uma década em que passeatas repletas de desfaçatez se espalharam pela Avenida Atlântica, o olhar dos contos de Natércia ilumina não apenas as ranhuras do mesquinho, dos pecados cotidianos mais vexatórios, mas também, pela chave do absurdo e do cômico, a chance de desvendar os códigos de um embate feroz.
Por trás da fauna que se desvela nas 171 páginas — nomes como Senhora Guga, Lady Moreira, Irmã de Caridade Zumbi, Dr. Ivan, Senhora Pochete e Tênis Bamba —, “Copacabana dreams” é certeiro ao misturar dois polos indissociáveis da paisagem do bairro. De um lado, a massa falida que vive às custas de um idílio condenado ao mofo; de outro, a novíssima realeza que reivindicou Copacabana — e a cidade — para si, inserindo nas margens do dia a dia a autenticidade que a opulência jamais seria capaz de alcançar, do morro ao asfalto, passando pelos imigrantes nordestinos que a cantaram.
‘A liberdade de mostrar-se’
Em ensaio de 2008 dedicado a Copacabana na literatura brasileira, a crítica Beatriz Resende anotou que, no bairro que chegava ao século XXI, “o escândalo não é mais possível”: “As coleções de monstruosidades tão caras ao século XIX incorporaram-se às ruas do bairro. Seres de identidade sexual ambígua ou dupla, adultos-crianças e crianças-mulheres, deformados ou modificados, qualquer ser habita as ruas de Copacabana, ao alcance dos olhos de qualquer passante.” E arrematou: “Ao sofrimento dessas exposições corresponde também a liberdade de mostrar-se. Os amores vendidos convivem com os amores liberados. Todas as violências são possíveis, mas todos os amores são também possíveis”.
Quatro anos após a publicação do livro de Beatriz Resende, Natércia Pontes recorreu a toda sorte de referências, especialmente o cinema — Rogério Sganzerla, Carla Camurati, Ruy Guerra —, para narrar histórias curtas, às vezes curtíssimas, de uma linha, em que os amores e os ódios, violentos, se confundem.
Assim como as mascotes infláveis enfileiradas no varal, entre as vias, no quarto conto, seus personagens “são bem frágeis, estão suscetíveis a desaparecer”. É desse limite que surge a linha-mestra de “Copacabana dreams” e suas exposições. O desejo de atravessar a Galeria Menescal de carro, os ônibus como formigas em cima do viaduto: tudo foge da ruína enquanto a circunda, num jogo de medo e deslumbre coado pelo delírio.
O que pode existir como fantástico e como horror nunca soa estanque, grudado a uma forma asfixiada. Na mitologia desta Copacabana — cujo entardecer na Prado Júnior exala “lufada de esgoto, perfume floral” e a aproxima do “futuro catastrófico” previsto por Rubem Braga e comentado por Beatriz Resende —, são elementos prosaicos, que ajudam a ler a rotina das ruas, dos personagens. Daí o apocalipse, diante do humor das histórias, mesmo as trágicas, nunca se consumar de fato.
A cena corriqueira descrita em “Já dizia Maysa” é um bom exemplo do tom geral. No sinal vermelho, uma mulher no ônibus emparelha com um táxi e flerta com o motorista, pela janela. Quando a luz fica verde, “um mundo caiu”.
Seria simples, não fosse o zigue-zague que Natércia Pontes constrói em apenas 12 linhas — e no livro todo: a busca pelas palavras exatas, caracterizações mínimas capazes de falar não de personagens, mas de um bairro, de estados de espírito com que qualquer um, no fim da tarde da Avenida Copacabana, seria capaz de trombar.
*Mateus Baldi é jornalista, mestre em Letras (PUC-Rio) e escreveu “Formigas no paraíso”
Serviço:
‘Copacabana dreams’
Autora: Natércia Pontes. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 176. Preço: R$ 84,90. Cotação: Ótimo.
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