Internacional

Em medida inédita, Colômbia estabelece plantio de árvores como pena para criminosos de guerra

Ex-oficiais militares condenados por centenas de mortes de civis podem optar pela jardinagem como pagamento das penas. Famílias das vítimas se opõem ao projeto

Agência O Globo - 16/05/2024
Em medida inédita, Colômbia estabelece plantio de árvores como pena para criminosos de guerra

A Colômbia deu início a um programa precursor de "justiça restaurativa", que impõe penas alternativas à prisão para os principais responsáveis por crimes de guerra. Uma das possibilidades colocada em prática é o plantio de árvores, ou “Siembras de paz” (Cultivos da paz, em tradução livre). Após o histórico cessar-fogo de 2016 com a extinta Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o país enfrenta o desafio da reconciliação social. Mas a ideia não é unânime, e desagrada principalmente os familiares das vítimas.

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Como qualquer jardineiro, o general reformado Henry Torres, de 61 anos, veste um macacão e cuida do plantio de uma muda no viveiro onde hoje cumpre pena na zona oeste da capital Bogotá. Ele é responsável por mais de 300 execuções, praticadas por militares sob o seu comando. As mortes a sangue-frio costumavam ser usadas para inflar os resultados do Exército no conflito armado.

— Estamos restaurando não apenas um ecossistema, mas tentando minimizar este dano que causamos. Era uma forma de ressarcir um dano, sem ser privado da liberdade — diz à AFP o ex-comandante, sentado em um banquinho camuflado de onde cuidava da jardinagem.

A iniciativa, no entanto, não agrada quem perdeu um ente querido para a guerra civil:

— Venha e plante árvores. Isso é absolutamente insuficiente, um tipo de deboche — protesta Margarita Arteaga, irmã de Kemel Mauricio, morto em 2007 pelos militares, que à época afirmaram que ele era um chantagista. Além de alegarem uma suposta troca de tiros durante a execução.

Entre 2002 e 2008, cerca de 6.400 civis foram mortos pelas forças armadas, que os apresentaram como criminosos ou guerrilheiros em troca de recompensas, segundo a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), o tribunal criado para julgar os crimes mais graves do conflito. O programa de plantio como pena já conta com 46 militares.

— Estamos tentando reconciliar nossa sociedade depois de uma guerra gravíssima. É muito novo e complexo — explica à AFP o presidente da JEP, Roberto Vidal, que acredita no "Cultivos da paz" como um projeto-piloto para tentar reorganizar a sociedade colombiana.

Verdade e espinhos

Sob o sol de Bogotá, uma dúzia de homens tira as ervas daninhas a golpes de facão. Os mais jovens preparam o terreno, enquanto Torres e outros militares mais velhos preparam arbustos para reflorestar o bosque.

— Buscamos com estes trabalhos curar estas feridas, transformar o dano causado — diz o major reformado Gustavo Soto, de 52 anos, que no ano passado encarou nos tribunais os familiares de 85 civis assassinados por uma unidade sob seu comando, e relembra: — Foi bastante difícil.

No começo dos anos 2000, ele fez parte da luta anti-insurgência do governo do então presidente Álvaro Uribe. Segundo ele, os êxitos eram avaliados pelo número de baixas de combatentes, algo que lamenta. Hoje, um arbusto invasor, cujos espinhos são compridos e conseguem perfurar o tecido grosso do macacão, é seu único alvo.

'O negócio da vida'

Torres e Soto estiveram presos pelos assassinatos cometidos. A JEP concedeu-lhes a liberdade em troca de contar a verdade e participar de iniciativas como o “Siembras de Paz”. Eles foram voluntariamente por cinco horas, sob supervisão do tribunal. Cada dia será reconhecido como pagamento “antecipado” da sanção.

Para Margarita Arteaga, os militares “fizeram o negócio de sua vida” ao se amparar na JEP. Seu irmão, que era artesão e fã de música punk, tinha 31 anos em fevereiro de 2007 quando chegou a uma cidade petroleira em Casanare para tentar a vida vendendo brincos e colares. Um mês depois, foi sequestrado por militares em um bar e executado na zona rural.

— Plantaram uma granada e um revólver com ele — recorda Margarita, chorando.

'Simbólico'

A Associação de Vítimas de Casanare pela Paz diz que entende o caráter simbólico das árvores, mas não acredita em reparação. Além de questionar fato do programa ter sido implementado a cerca de 200 km de onde os homicídios ocorreram, e afirma que os militares omitiram as torturas contra suas vítimas.

Em resposta, o presidente da JEP afirma que a violência de vários grupos armados, incluindo rebeldes que se afastaram do acordo com a guerrilha das Farc, obrigou o tribunal a levar o programa aos arredores de Bogotá.

Mais duas iniciativas de justiça restaurativa já estão funcionando. Uma para os participantes reconstruírem um centro indígena, e outra em que educam sobre o perigo das minas terrestres — desenhada com a função de matar ou ferir várias pessoas que estiverem próximas a estes artefatos após a sua explosão.

Para Arteaga, é preciso mais. E sugere que os oficiais reformados deveriam visitar batalhões e contarem aos soldados em formação o que fizeram e o que não deve se repetir.