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Mulheres questionam misoginia e reivindicam espaço na China, governada por homens e onde feminismo é 'ameaça'

Num país em que os direitos femininos foram restringidos e silenciados, grupos feministas têm se mobilizado para debater suas próprias identidades

Agência O Globo - 06/05/2024
Mulheres questionam misoginia e reivindicam espaço na China, governada por homens e onde feminismo é 'ameaça'

Em bares escondidos em becos, salões de beleza e nas livrarias ao redor de Xangai e de algumas das outras maiores cidades da China, as mulheres passaram a debater o seu lugar num país onde os homens fazem as leis. O Partido Comunista, que governa o país, identificou o feminismo como uma ameaça à sua autoridade. Nesse cenário, ativistas pelos direitos das mulheres foram presas, e preocupações com assédio e violência feminina são ignoradas ou silenciadas.

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O líder chinês, Xi Jinping, diminuiu o papel das mulheres no trabalho e nos cargos públicos. Não há membros do sexo feminino no círculo interno de Xi ou no Politburo, o órgão executivo responsável pela elaboração de políticas. O presidente invocou papéis mais tradicionais para as mulheres — como cuidadoras e mães — no planejamento de uma nova “cultura de procriação” para lidar com uma população em declínio.

Grupos de mulheres chinesas, no entanto, estão silenciosamente reivindicando suas próprias identidades. Muitas são de uma geração que cresceu com mais liberdade do que suas mães. Mulheres em Xangai, profundamente abaladas por um lockdown de dois meses devido à Covid-19 em 2022, estão sendo impulsionadas pela necessidade de construir uma comunidade. Para Du Wen, fundadora do Her, um bar que realiza debates femininos, “todo mundo que vive nesta cidade parece ter chegado à fase em que querem explorar mais o poder das mulheres”.

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Frustrada com a compreensão cada vez mais restrita do público sobre as mulheres, Nong He, estudante de cinema e teatro, realizou uma exibição de três documentários dirigidos por cineastas chinesas. Para ela, é importante existir “um espaço mais amplo para as mulheres criarem”. He espera que a organização de um evento desse tipo possa fazer com que as pessoas saibam “como é a vida de outras mulheres”. A ideia, disse, é que elas possam se “conectar e oferecer ajuda uma à outra”.

Violência e assédio

Em eventos discretamente divulgados, mulheres questionam a misoginia na cultura chinesa e compartilham dicas para iniciantes no feminismo. Na China, há poucas estatísticas confiáveis sobre violência de gênero e assédio sexual, mas casos de violência contra mulheres têm ocorrido com maior frequência, segundo pesquisadoras e assistentes sociais. Histórias de mulheres mutiladas ou mortas por tentarem deixar seus maridos têm circulado. Em 2022, a descoberta de uma mulher acorrentada numa fazenda tornou-se um dos tópicos mais debatidos online.

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Com cada caso, as reações foram altamente divididas. Muitas pessoas denunciaram os agressores e apontaram o sexismo na sociedade. Outros, no entanto, culpabilizam as vítimas. A forma como essas discussões têm polarizado a sociedade deixou Tang, empreendedora e ex-editora da Vogue China, nervosa. Enquanto suas amigas compartilhavam sentimentos de vergonha por não se casarem, ela buscava uma estrutura para articular o que estava sentindo. Mais tarde, Tang decidiu abrir a Paper Moon, uma loja para leitores intelectualmente curiosos como ela.

— Eu descobri que nem eu mesma tenho pensamentos muito claros sobre essas coisas. As pessoas estão ansiosas para falar, mas elas não sabem sobre o que estão falando — afirmou ela, que dividiu sua livraria numa seção acadêmica que apresenta a história feminista e estudos sociais, além de literatura, poesia e biografias. — Você precisa ter algumas histórias reais para encorajar as mulheres — completou.

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Wang Xia, proprietária da livraria Xin Chao, optou por evitar completamente a palavra “feminismo”. Em vez disso, ela descreveu sua livraria como um local com “temática feminina”. Quando o espaço foi inaugurado, em 2020, era um espaço amplo com recantos para fomentar conversas privadas e seis salas de estudo nomeadas em homenagem a autoras famosas como Simone de Beauvoir. A loja atendeu mais de 50 mil pessoas por meio de eventos, workshops e palestras online — e ficou tão famosa que até a mídia estatal escreveu sobre ela.

— Nem toda cidade tem uma livraria feminina — disse ela. — Há muitas cidades que não têm esse solo cultural.