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Madonna deu voz e um corpo livre aos desejos das mulheres: na cultura, nos negócios e no sexo

Uma mulher cumprir 40 anos de carreira dominando o palco global é algo inédito na indústria cultural, e é por isso que a exaltação que ela faz da própria trajetória na Celebration Tour é tão importante

Agência O Globo - 04/05/2024
Madonna deu voz e um corpo livre aos desejos das mulheres: na cultura, nos negócios e no sexo
Madonna

Uma mulher. Não custa lembrar que quem se apresentará neste sábado (4) em Copacabana é uma mulher. Madonna representa tanto para tanta gente — é a rainha do pop, um ícone LGBTQIA+, uma questionadora do status quo — que, às vezes, é preciso dizer o óbvio.

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Madonna é uma mulher, e uma mulher cumprir 40 anos de carreira dominando o palco global é algo inédito na indústria cultural. E é por isso que a exaltação que ela faz da própria trajetória na Celebration Tour é tão importante.

Até o século XX, poucas foram as artistas que conseguiram algum destaque no espaço público. À maior parte delas o destino reservava trabalhos subalternos ou o lugar de “anjo do lar”, como descreveu Virginia Woolf. Pensem que Chiquinha Gonzaga precisou sair de casa e perder a guarda dos filhos para dedicar-se à música. Ou que a pintora Françoise Gilot foi perseguida por Pablo Picasso a tal ponto que a exposição de sua obra que acontece em Paris este ano é tratada como reparação histórica.

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Foi só no início dos século XX, quando os movimentos pelos direitos civis das mulheres se encontraram com a era da reprodução técnica da obra de arte, que elas puderam se lançar em busca de protagonismo artístico. Mas quantas antes de Madonna tiveram a oportunidade de construir carreiras longevas, comercialmente rentáveis e de tamanho impacto político e cultural?

Madonna viveu a adolescência e entrou na vida adulta em plena segunda onda feminista, aquela que afirmou que o “pessoal é político”, abrindo espaço para as mulheres no mercado de trabalho e fazendo uma revolução sexual nos anos 1960 e 1970.

Ambiciosa (“Eu quero dominar o mundo”, disse em 1984), construiu uma persona física que manifestava essa disposição de conquista. Respondeu com músculos fortes à ideia de feminilidade frágil, contestou a opressão católica misturando sexo e religião, propôs a livre manifestação da sexualidade das mulheres em oposição à objetificação feita pelos homens, e rebateu a violência patriarcal com os sutiãs em formato de cone, ao mesmo tempo armas de defesa e de ataque, desenhados pelo brilhantismo rebelde de Jean Paul Gaultier.

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Anitta, Beyoncé e Taylor

Com suas canções e performances, Madonna fez de si um manifesto feminista ambulante, como se dissesse “Mulheres do mundo, uni-vos”, dando uma volta no capitalismo machista que acreditava que a garota de “Material Girl” só queria um homem rico. Na verdade, que me desculpem Marx e Engels, ela queria ser dona do capital e dos meios de produção e conquistou para si um poder que nenhuma outra mulher antes dela alcançou no show business, abrindo caminho para que, hoje, Taylor Swift possa quebrar recordes, Beyoncé possa fazer política no palco e Anitta dizer que é "bem puta" em seu novo álbum, "Funk Generation".

Madonna deixou conservadores em pânico por defender o sexo antes do casamento em "Like a virgin" (1984) e por “Papa don’t preach” (1986) tornar-se um hino em manifestações pela descriminalização do aborto mundo afora. Chegou ao fim dos anos 80 antecipando temas que a terceira onda feminista colocaria em pauta na década seguinte: tratou de gênero, raça e classe no clipe de “Like a prayer”, denunciando violência sexual e supremacia branca, e convocou mulheres a levantarem suas vozes em “Express Yourself”, ambas de 1989.

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Durante a primeira metade da década de 90, Madonna forneceu uma espécie de panorama visual do que Judith Butler teorizava em “Problemas de gênero”, obra inaugural da teoria queer: um questionamento da heteronormatividade e da cisgeneridade, afirmando a identidade da mulher como múltipla. Abordou todas as possibilidades do amor e do desejo femininos no vídeo de “Justify my love” (1990), no álbum “Erotica” (1992) e no livro “Sex”. O segredo que cantou em “Secret” (1996)? Uma namorada travesti.

Nessa mesma época, Madonna, a mulher que carrega o nome usado para a representação artística da Virgem Maria, foi excomungada duas vezes pela Igreja Católica. Primeiro, pelo clipe de “Like a prayer”, em que Jesus é um homem negro a quem ela beija, e depois pela encenação de uma masturbação enquanto cantava “Like a Virgin” na turnê “Blonde Ambition” — é curioso que Michael Jackson nunca tenha sido censurado por dançar com a mão na genitália. Em resposta, veio a primeira coletânea de hits, não por acaso chamada de “The Immaculate Collection”, com uma dedicatória ao Papa João Paulo II: “Minha inspiração divina”, escreveu ela, que foi excomungada uma terceira vez, em 2006, quando cantou “Live to tell” em uma cruz gigante e usando uma coroa de espinhos. O Papa Bento XVI chamou a "Confessions Tour" de "circo do diabo".

A teórica feminista Camille Paglia, tão deslumbrada quanto apavorada pela obra de Madonna, a acusou de objetificar a si mesma, para depois afirmar “ela mudou o mundo com sua atitude e tornou possível para as mulheres assumirem o comando de suas sexualidades”.

Depois de ser porta-bandeira de uma proposta radical de libertação sexual feminista e queer, Madonna se casou e descasou, teve dois filhos biológicos, adotou quatro no Malawi e criou um fundo para ajudar crianças do país. Mirou então a Guerra ao Terror de George W. Bush e o estilo de vida americano em “American Life” (2003) e, em 2017, no dia seguinte à posse de Donald Trump, foi às ruas na Marcha das Mulheres, em Washington: “À rebelião. À nossa recusa como mulheres em aceitar essa nova era de tirania”, discursou enfileirando palavrões e concluindo: “Quero explodir a Casa Branca”.

De lá para cá, Madonna vem envelhecendo em público. Antes de iniciar a Celebration Tour foi criticada pelos figurinos que revelam seu corpo de 65 anos, por namorar homens mais jovens, por celebrar a si mesma com o show e pelos procedimentos estéticos no rosto. Até mesmo Camille Paglia a criticou por mostrar os seios nus: “Aquelas fotos eram revoltantes. Era embaraçoso. Hediondo. Ela parecia uma prostituta decadente que não sabe que está na sarjeta”. Francamente, que feminista pensaria que Madonna aceitaria a invisibilidade que a indústria cultural oferece às mulheres mais velhas?

Ao ganhar o prêmio de Mulher do Ano da revista Billboard, em 2016, a cantora agradeceu o reconhecimento por sua habilidade de “continuar a minha carreira encarando misoginia flagrante, sexismo, intimidação constante e abuso sem piedade”. E terminou com uma frase que viralizou nas redes sociais: “Acho que a coisa mais controversa que eu já fiz foi me manter aqui”.

A gente sabe, Madonna.