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Falta crônica de energia leva tema ao centro das eleições sul-africanas e expõe uso do carvão

Em 83 dos 118 dias deste ano, moradores da África do Sul ficaram às escuras; crise começou há cerca de 17 anos no país, que há três décadas está sob controle do partido de Nelson Mandela

Agência O Globo - 29/04/2024
Falta crônica de energia leva tema ao centro das eleições sul-africanas e expõe uso do carvão
Falta crônica de energia leva tema ao centro das eleições sul-africanas e expõe uso do carvão - Foto: Reprodução / internet

Em 83 dos 118 dias deste ano, moradores da África do Sul passaram parte do tempo às escuras, segundo dados da plataforma The Outlier. A crise começou há cerca de 17 anos no país, que completou no sábado três décadas sob o controle do Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Nelson Mandela, eleito em 1994. E mais do que nunca, o risco de um apagão total no país preocupa os sul-africanos, que irão às urnas no mês que vem. Em uma pesquisa recém-divulgada pela organização Nguvu Collective, 85,5% dos entrevistados disseram que a crise energética nacional é o principal problema que precisa de uma solução imediata.

— Nas últimas eleições gerais, em 2019, os três partidos que receberam o maior número de votos dedicaram uma média de apenas 2% dos seus programas de governo à eletricidade. Na atual campanha eleitoral, as principais legendas dedicaram até 10% ao tema — afirma Hartmut Winkler, professor da Universidade de Johannesburgo, que se dedica ao assunto.

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Na raiz do problema está uma fonte de energia ultrapassada no mundo, o carvão. Apesar de ter diminuído nos últimos anos, números oficiais da Agência Internacional de Energia indicam que hoje cerca de 80% da energia da África do Sul ainda vêm do combustível fóssil — em 2021, esse total chegava a 86%.

Redução de carga

Na última década, a produção nas principais centrais elétricas a carvão do país caiu de quase 80% para cerca de 55% de sua capacidade máxima, em grande parte por causa do envelhecimento dos equipamentos, da utilização excessiva e manutenção inadequada.

— Muitas centrais estão perto do fim da vida útil planejada inicialmente. A nova capacidade de produção deveria ter sido desenvolvida há muito tempo, mas os projetos iniciados estavam muito atrasados em suas épocas de construção, ou acabaram bloqueados por interferência política — explica Winkler.

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Em 2015, o então presidente Jacob Zuma tentou implantar um novo programa de construção nuclear liderado pela Rússia, mas falhou por questões legais e críticas da oposição. À época, o programa eólico e solar se mostrava uma alternativa de sucesso. Mas, mesmo com algumas das melhores condições para a produção de energia solar e eólica no mundo, hoje apenas cerca de 10% da eletricidade do país vêm de fontes renováveis.

O professor considera “bizarro” o fato de que um programa de construção de parques solares e eólicos não esteja sendo levado a sério no país, membro do Brics+ (bloco que inclui também Brasil, Rússia, China, Índia, Egito, Irã, Arábia Saudita, Etiópia e Emirados Árabes Unidos), que tem a transição energética como tema crucial.

— A razão para esta situação se deve, na minha opinião, principalmente ao interesse do grande setor do carvão e a um influente lobby nuclear e do gás. Nesse sentido, sinto também um forte impulso de países terceiros, especialmente da Rússia — diz.

Hoje em dia, a expressão load shedding (redução de carga) faz parte do vocabulário de quem vive no país, considerado o mais industrializado do continente africano. De acordo com o programa de revezamento de corte de energia, um aplicativo de celular envia um alerta informando quando não haverá eletricidade em determinado bairro. Os cortes podem ser diários e se repetir em diferentes turnos E, para piorar a situação da já inadequada infraestrutura, roubos de fios de cobre e problemas de manutenção também costumam deixar a população sem eletricidade — o que o aplicativo não prevê.

A chef de cozinha brasileira Conceição Silva conta que já chegou a ficar três dias sem energia em casa.

— Já joguei fora fornadas de pães porque a luz faltou e diziam que chegaria em tal horário, o que não aconteceu. Tive que jogar fora toda a produção para um evento porque a massa fermentou demais e estragou. Já descartei também carne e frango devido ao mesmo problema — conta.

Assim como ela, a escritora Kinha Costa também já teve prejuízos causados pelos constantes cortes de energia.

— O portão elétrico da minha casa e modems de internet já precisaram ser trocados porque queimaram.

Kinha e o marido decidiram gastar cerca de R$ 30 mil instalando um sistema alternativo, que inclui oito painéis solares e baterias. Quando a energia acaba, automaticamente ele começa a operar. Mas é um investimento que nem todos conseguem fazer. Quem depende da internet para trabalhar tem instalado em casa alguns equipamentos mais baratos que mantêm, pelo menos, o serviço funcionando.

O tempo que a população fica sem eletricidade depende do estágio do load shedding anunciado pela Eskom, distribuidora pública de energia — recentemente a empresa comemorou um mês sem suspender o fornecimento de energia. O Regulador Nacional de Energia da África do Sul (Nersa, na sigla em inglês) acaba de aprovar a implementação do estágio 16 como o máximo.

— A fase 16 implica ausência de energia durante quase 24 horas por dia. Seria uma situação de crise extrema, só imaginável em caso de guerra ou de grande desastre natural — explica Winkler, destacando que o programa é uma ferramenta para evitar o colapso da rede. — Um colapso ocorre quando o uso de energia excede o fornecimento. O load shedding força a redução do uso.

A questão entrou de vez nas eleições. O partido opositor Aliança Democrática, assim como outras legendas, acredita que a privatização em grande escala da eletricidade pode acabar com os cortes de energia. Já o Combatentes pela Liberdade Econômica, de extrema esquerda, defende a nacionalização e quer rescindir os contratos existentes com produtores privados. Propõe reparar centrais elétricas alimentadas a carvão e mantê-las em funcionamento por mais tempo.

— Mas consertar algumas usinas pode ser proibitivamente caro — alerta o pesquisador.

Energias renováveis

O CNA, que corre o risco de perder pela primeira vez a maioria no Parlamento, segundo as pesquisas mais recentes, cita o crescimento industrial e as oportunidades de emprego associadas às energias renováveis, como o desenvolvimento de um setor de hidrogênio verde. O partido diz, ainda, que pretende “desenvolver projetos de gás, energia nuclear e hidroelétrica”.

Seja quem for, o próximo presidente sul-africano terá que conduzir um programa técnica e financeiramente sensato para aumentar a produção de eletricidade, avalia Winkler.

— Basicamente, isso significa construir novas centrais elétricas para substituir as antigas centrais a carvão. Isso terá de ser principalmente na forma de novos parques solares e eólicos, e penso que o presidente mais provável, Cyril Ramaphosa [que busca a reeleição], vê as coisas dessa forma. No entanto, enfrentará muita oposição dentro do partido e de potenciais parceiros de coligação que são, na minha opinião, fãs equivocados dos combustíveis fósseis e da energia nuclear.