Política

Em carta, comandante da Marinha critica projeto de senador petista que inclui João Candido como Herói da Pátria

Nomeado por Lula, Marcos Sampaio Olsen tenta barrar homenagem ao Almirante Negro, que liderou a Revolta da Chibata, chamada pelo oficial de 'deplorável página da história nacional'

Agência O Globo - 24/04/2024
Em carta, comandante da Marinha critica projeto de senador petista que inclui João Candido como Herói da Pátria

O comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, enviou uma carta à presidência da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados na qual se manifesta de modo contrário à inclusão do nome de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. A homenagem ao marinheiro já foi aprovada no Senado e agora é debatida na Câmara. O projeto de lei contestado é de autoria do deputado federal Lindbergh Farias (PT-RJ), correligionário do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, responsável pela nomeação de Olsen para chefiar a Força.

No ofício assinado na segunda-feira e encaminhado ao deputado federal Aliel Machado (PV-PR), o comandante afirma que incluir Cândido ou "qualquer outro participante daquela deplorável página da história nacional" seria como transmitir, em particular aos militares, a mensagem de que é lícito "recorrer às armas que lhes foram confiadas para reivindicar suposto direito individual ou de classe".

"Os castigos físicos levados a cabo nos navios, pratica inaceitável, sob perspectiva alguma, e absolutamente incompatível com os caros preceitos morais observados pela sociedade contemporânea, foram reconhecidos, posteriormente, como equivocados e indignos, e os insurgentes, inclusive, anistiados. Porém, resta notável diferença entre reconhecer um erro e enaltecer um heroísmo infundado", diz a carta assinada por Olsen.

O comandante afirma que a Força Naval "não vislumbra aderência da atuação de Cândido na Revolta dos Marinheiros com os valores de heroísmo e patriotismo". Segundo o documento, a posição do líder no conflito representa um "flagrante que qualifica reprovável exemplo de conduta para o povo brasileiro".

"Nos dias atuais, enaltecer passagens afamadas pela subversão, ruptura de preceitos constitucionais organizadores e basilares das Forças Armadas e pelo descomedido emprego da violência de militares contra a vida de civis brasileiros é exaltar atributos morais e profissionais, que nada contribuirá ao pleno estabelecimento e manutenção do verdadeiro Estado Democrático de Direito", finaliza o comandante.

O GLOBO procurou o deputado Aliel Machado e a Marinha do Brasil, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.

Quem foi o 'Almirante Negro'

Filho de ex-escravos, João Cândido nasceu em 1880 e se alistou na Marinha aos 14 anos. Mesmo após a abolição da escravatura, em 1888, os soldados negros, muitas vezes recrutados à força, continuaram sendo mal alimentados, recebendo salários insignificantes e punições físicas abusivas.

Cândido conseguiu se destacar como timoneiro e em 1909 foi treinado no Reino Unido para manejar dois novos navios de guerra adquiridos pelo Brasil, que representavam o que havia de mais moderno em tecnologia militar.

O processo de modernização da Marinha apenas alimentou ainda mais a frustração dos marinheiros negros maltratados. Depois que um membro do navio de Cândido foi punido em 1910 com 250 chicotadas – o que deixou suas costas como um “peixe eviscerado”, como disse um oficial branco –, mais de dois mil marinheiros negros iniciaram o motim.

Liderados por Cândido, apelidado de “Almirante Negro”, os marinheiros capturaram quatro navios e apontaram 80 canhões para a cidade do Rio de Janeiro. “Não toleraremos mais a escravidão na Marinha do Brasil”, escreveram ao então presidente Hermes da Fonseca.

Após quatro dias de tensões, o governo aboliu as punições com chicotadas e prometeu anistia aos rebeldes. No entanto, a Marinha prendeu e executou membros da revolta. Cândido e outras 30 pessoas acabaram em uma pequena cela em condições tão duras que apenas ele e mais um prisioneiro sobreviveram. Ele viveu o resto de sua vida na pobreza.

Desde a morte de Cândido em 1969, o Brasil viu seu legado com novos olhos. Em 2008, o governo concedeu-lhe anistia póstuma e uma estátua foi erguida em sua homenagem no Praça Marechal Âncora, no Centro do Rio. Em novembro, o Ministério Público Federal exigiu da Marinha uma indenização para a família do almirante.

Em 2024, o "almirante negro" foi retratado no desfile da escola de samba Paraíso do Tuiuti por Max Ângelo dos Santos, o entregador que foi agredido a chicotadas em São Conrado, na Zona Sul do Rio, no ano.

No mês passado, o Ministério Público Federal (MPF) reforçou o pedido de anistia e reparação para Cândido. Em parecer enviado ao Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) nesta terça-feira, o órgão demonstra a perseguição sofrida pelo líder da Revolta da Chibata — morto em 1969 — e ataques à sua memória até a abertura democrática. O documento encaminha requerimento formulado pelo filho do militar, Adalberto Nascimento Cândido, à Comissão de Anistia da pasta.